quinta-feira, 7 de abril de 2011

As imunizações de Pasteur e os modelos animais de auto-imunidade

Hoje não escrevo sobre nenhuma novidade, nenhuma tecnologia nova, nenhuma descrição de um novo gene. Escrevo sobre uma “velhidade” de quase 130 anos, sobre a primeira vacina contra raiva desenvolvida em 1882 por Louis Pasteur. Costuma-se dizer que Edward Jenner descobriu as vacinas, mas foi Pasteur quem as inventou. Com a invenção das vacinas, Pasteur ajudou a fundar a Imunologia.

As primeiras formulações vacinais de Pasteur contra a raiva consistiam em um extrato seco de medula espinhal de coelhos infectados com vírus da raiva. As medulas eram desidratadas por 5-14 dias (para inativar o vírus) em frascos de vidro estéreis contendo hidróxido de potássio; em seguida, os pacientes mordidos por animais raivosos eram injetados repetidamente com esses extratos durante 10 dias (isso é que é imunização, o resto é brincadeira). Durante o esquema de imunização, as primeiras injeções eram de medulas desidratadas por 14 dias, mas as últimas injeções eram de medulas desidratadas por apenas 5 dias. Depois do sucesso dos testes de sua vacina em cães, em 1885, Pasteur vacinou pela primeira vez Joseph Meister, um menino de 9 anos que tinha sido mordido por um cão raivoso. O primeiro caso e os subsequentes foram um sucesso, Pasteur conseguiu prevenir o desenvolvimento de raiva nas pessoas mordidas por animais raivosos. Porém, em alguns casos a vacina não era capaz de prevenir a doença. Pasteur preocupado (e desesperado) resolveu então injetar os pacientes com extratos que foram desidratados por apenas um dia, para garantir a virulência da vacina. Não demorou muito até que alguns pacientes passassem a apresentar paralisia facial e dos membros. Quando li sobre isso na biografia de Pasteur, pensei: Pasteur estava era induzindo EAE (experimental autoimmune encephalomyelitis) nessas pessoas. Mas a biografia não mencionava nada sobre isso.

Pesquisando sobre o assunto (que muito me interessa, afinal estou no lab do Juan Lafaille e trabalhando com EAE), encontrei que na década de 20, o pesquisador Thomas Rivers, da Universidade Rockefeller, intrigado com os casos de paralisia pós-vacinação contra raiva, resolveu testar a hipótese de que a infecção por alguns vírus era capaz de afetar o sistema nervoso central. Ele então fez o seguinte experimento: injetou macacos com extrato de cérebro de coelho infectados com vírus, e como controle, macacos receberam extratos de cérebro de animais não infectados. Um detalhe importante desse experimento é que os macacos recebiam de 50 a 85 injeções intramusculares para garantir uma boa imunização! Tudo isso porque naquela época, Freund ainda não tinha inventado um dos mais importantes aliados dos imunologistas, o famosos adjuvante completo de Freund (CFA), também conhecido como o “dirty little secret” de Charles Janeway (que agora com a descoberta dos TLR não é mais segredo e nem sujo). Mas voltando ao assunto, o que Rivers observou foi que os macacos do seu grupo “controle” desenvolveram paralisia facial e ataxia. Histologicamente, o cérebro desses animais apresentava um intenso infiltrado inflamatório e destruição da mielina. Estava descrito o primeiro modelo de encefalomielite disseminada. Os resultados de Rivers foram publicados no Journal of Experimental Medicine em 1933, 1934 e 1935. Alguns anos depois, Freund reproduziu os resultados de Rivers (e também os de Pasteur) em porquinhos da Índia imunizados apenas uma vez com extrato de cérebro emulsionado no seu adjuvante (na época, humildemente chamado de “mycobacteria in water-oil emulsion”) e publicou os resultados no Journal of Immunology em 1947, cunhando o termo “experimental allergic encephalomyelitis” (EAE). Nesse artigo, Freund usa um outro controle interessante, a imunização com extrato de outros tecidos que não o nervoso. Ele observou que os sinais típicos de paralisia desenvolvidos nos animais imunizados com extrato de cérebro eram ausentes nos animais imunizados com extrato de coração ou rim, e sugeriu que a “reação alérgica” era tecido-específica. A partir daí, muitos pesquisadores perceberam as semelhanças entre os achados clínicos e histopatógicos de Pasteur, Rivers e Freund e doenças humanas que também causam destruição da mielina, como a esclerose múltipla, e passaram a usar o modelo de EAE para estudar tais doenças. Mas foi somente na década de 80, que o termo “experimental allergic encephalomyelitis” mudou para o que hoje chamamos de “experimental autoimmune encephalomyelitis”. Um dos principais trabalhos que contribuíram para a descoberta da origem auto-imune da encefalomielite de Pasteur foi o artigo de Irun Cohen publicado no European Journal of Immunology em 1981, onde ele mostra que a EAE podia ser induzida pela transferência passiva de clones de células T que reconheciam a mielina.

O modelo de EAE é o primeiro e mais bem caracterizado modelo de doença auto-imune humana. Estudos que utilizaram e utilizam o modelo de EAE contribuíram e contribuem de forma significativa não somente para o entendimento da patogênese da esclerose múltipla e desenvolvimento de terapias que hoje em dia são usadas em pacientes, como o Copaxone (acetato de glatiramer) e Tysabri (natalizumab, anti-VLA4), como também para o entendimento de aspectos básicos dos processos imunológicos. Claro que tem suas desvantagens, e muitas questões ainda em aberto, mas isso é assunto pra outro post.

Para saber mais sobre a história de Pasteur e da EAE:

Louis Pasteur (biografia por Patrice Debré)

http://www.biography.com/articles/Louis-Pasteur-9434402?part=3

Baxter AG. The origin and application of experimental autoimmune
encephalomyelitis. Nat Rev Immunol. 2007 Nov;7(11):904-12.
Nessa revisão você encontrará as referências originais dos artigos de Rivers e Freund, dentre outros.

Steinman L, Zamvil SS. How to successfully apply animal studies in
experimental allergic encephalomyelitis to research on multiple sclerosis. Ann
Neurol. 2006 Jul;60(1):12-21.

3 comentários:

  1. Obrigado pelo post, muito interessante. Gostaria de acrescentar a participação de Thomas na vacina da Polio

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  2. Se Pasteur vacinava as pessoas após terem sido mordidas por um animal raivoso, e assim poderiam já estar infectadas, estaria ele criando também a vacinação terapêutica?

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