sexta-feira, 18 de março de 2011

Armas, germes e aço

Em seu livro intitulado Armas, Germes e Aço, o ganhador do Prêmio Pulitzer de 1998, Jared Diamond levanta a hipótese de que o desenvolvimento tecnológico (aço), as armas e as doenças infecciosas tiveram um papel preponderante no desenvolvimento das diversas sociedades ao longo da história. Neste sentido, é interessante papel desempenhado pelas epidemias para decidir o rumo da nossa história. A título de exemplo, poderíamos citar a Praga de Atenas em 430 A.C. durante a Segunda Guerra do Peloponeso, a qual dizimou as tropas atenienses e contribuiu de forma decisiva para a derrota de Atenas para Esparta. Também é bem conhecido o papel desempenhado pelas doenças infecciosas em dizimar as populações indígenas americanas durante a colonização e assim garantir a conquista do nosso continente pelos europeus. É digno de nota que este foi um episódio da nossa história o qual não somente foi escrito com armas, germes e aço, mas também no qual os germes foram utilizados como armas, num rudimento da tão temida guerra biológica.

No início do século vinte, a Gripe Espanhola causou a morte de mais de 50 milhões de pessoas em pouco mais de um ano, enquanto a sua contemporânea, a Primeira Guerra Mundial, em quatro anos de conflito e utilizando o que havia de mais mortífero em tecnologia naquela época, ceifou a vida de um número menor de pessoas (cerca de nove milhões de mortos). É interessante mencionar o fato de que a gripe espanhola teve um profundo impacto no desenrolar da Primeira Guerra Mundial, dizimando unidades militares das várias nações beligerantes e contribuindo assim para abreviar o desfecho dessa guerra. Além disso, acredita-se que a Primeira Guerra Mundial, por sua vez, tenha desempenhado um papel preponderante para a propagação da Gripe Espanhola, na medida em que submeteu uma grande parcela da população às condições insalubres da vida nas trincheiras, aos gases de guerra e finalmente, através do deslocamento de pessoas infectadas nos teatros de campanhas e finalmente, ao enviar as tropas para as suas casas quando a guerra acabou em novembro de 1918.

Ao contrário da gripe sazonal, a qual normalmente é mais grave para indivíduos abaixo de dois anos ou acima dos sessenta e cinco anos de idade, a Gripe Espanhola caracterizou-se por ser especialmente mortal para os adultos jovens. Durante décadas a explicação para essa observação permaneceu um mistério, sendo que o vírus causador da gripe de 1918 foi sepultado com as suas vítimas. Somente há cerca de 10 anos uma equipe de pesquisadores liderada pelo Doutor Taubenberger do Department of Molecular Pathology Armed Forces Institute of Pathology Rockville (EUA) começou a decifrar esse mistério, num trabalho que mesclou paleovirologia e modernas técnicas de biologia molecular conhecidas como genética reversa.

Para esse fim, foram exumados cadáveres de esquimós que sucumbiram à gripe espanhola e foram sepultados no terreno sempre congelado do Alasca. A partir do tecido pulmonar desses cadáveres, foi possível obter a “pedra roseta” para se decifrar o enigma da gripe espanhola sob a forma do material genético do vírus influenza de 1918 que permaneceu conservado no pulmão das vítimas da Gripe Espanhola. Valendo-se da técnica de genética reversa, foi possível recriar em laboratório o vírus influenza de 1918, cerca de 80 anos após o seu desaparecimento e assim, permitir-nos começar a compreender as bases moleculares e imunológicas de uma das mais graves epidemias do século passado.

Ainda que muitas perguntas ainda permaneçam sem resposta, os estudos realizados em diferentes modelos experimentais demonstraram o papel crucial das duas glicoproteínas de superfície do vírus influenza: hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NA) e de uma proteína do complexo de uma replicação viral (PB1) para a grande virulência do vírus influenza de 1918, o qual se multiplica mais intensamente do que os vírus influenza causadores da gripe sazonal.

Além disso, nos animais infectados com o vírus de 1918 foi observada uma intensa resposta inflamatória, caracterizada pela presença de neutrófilos, aumento do número de macrófagos e uma produção exacerbada e descontrolada de citocinas pró-inflamatórias, acarretando edema e destruição do tecido pulmonar e, consequentemente, a morte dos animais infectados, num quadro muito semelhante aquele observado nos pacientes que sucumbiram à Gripe Espanhola. Desta forma, acredita-se que uma possível explicação para a maior mortalidade entre os indivíduos jovens infectados pelo vírus de 1918 seria a indução de uma resposta imune mais robusta, a qual teria um papel crucial na patologia da infecção por esse vírus.

Curiosamente, a resposta imunológica e a patologia induzidas pela infecção com o vírus de 1918 são muito semelhantes àquelas observadas em decorrência da infecção pelos vírus influenza aviários H5N1, cuja letalidade para os seres humanos é da ordem de 60%. Felizmente, até o presente momento, esses vírus se mostraram pouco eficazes em infectar os seres humanos e a sua transmissão homem a homem é praticamente nula. Não obstante, o risco de uma futura pandemia causada por vírus influenza H5N1 é real e, assim a circulação e a evolução desses vírus deve ser rigorosamente monitorada.

Felizmente, o cenário mundial atual é muito diferente daquele de 1918 e estamos tecnicamente mais aptos para responder de forma eficaz a futuras pandemias de influenza. Não obstante, segundo um estudo realizado pelo Banco Mundial em 2006, uma pandemia nos moldes daquela de 1918 poderá ter um custo mundial de mais de três trilhões de dólares e acarretar a morte de mais de 15 milhões de pessoas. Ademais, de maneira semelhante ao que tem sido observado com a pandemia de HIV, o impacto de uma pandemia de influenza deverá ser maior nos países menos desenvolvidos, os quais não possuem adequado sistema de saúde pública e acesso às drogas antivirais e às vacinas. Tal situação se torna ainda mais preocupante quando levamos em consideração o fato de que alguns dos países mais pobres do mundo estão em guerra civil, dificultando ainda mais o acesso de suas populações aos serviços de saúde.

Desta forma, apesar de vivermos numa realidade tecnológica muito diferente daquela dos atenienses da Guerra de Peloponeso, dos nossos conterrâneos indígenas do século XVI ou dos soldados na lama das trincheiras de Verdun, a guerra e os germes ainda contribuem de forma decisiva para determinar os tortuosos rumos da nossa história.

Dr. Alexandre de Magalhães Vieira Machado é pesquisador da Fiocruz/CPqRR.

3 comentários:

  1. Li este livro e recomendo sua leitura !

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  2. Alexandre,

    Parabéns pela excelente postagem. Adorei a leitura. Vou ler o livro.

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  3. Ótimo post Alexandre!

    Do mesmo autor de Armas, germes e aço, vale a pena conhecer a tese completa deste, entitulada Colapso.

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