domingo, 28 de dezembro de 2014

Possível identificação do peptídeo artritogênico


O envolvimento de células T CD4+ na patogênese da artrite reumatoide (AR), uma doença de caráter autoimune, é muito bem estudado. Entretanto, ainda não se tem a identificação do peptídeo artritogênico ou do clone de TCR capaz de reconhecer antígenos próprios que levam a AR. a fim de se detectar precocemente a doença e possivelmente impedir seu estabelecimento.
A obtenção de clones de células T autorreativas é uma tarefa difícil, uma vez que são eliminadas no timo ou se encontram em estado inativo na periferia. Além disso, quando obtidas, geralmente estas células apresentam um perfil regulador (FoxP3+), sendo portanto incapazes de transferir doença. Para contornar esta questão, Ito e colaboradores (aqui) utilizaram animais SKG, que desenvolvem artrite autoimune por uma falha nos mecanismos de seleção negativa, para desvendar clones de células T autorreativos capazes de induzir artrite.
Células T CD4+ de animais SKG foram transferidas para animais Rag2-/- e posteriormente recuperadas da sinóvia acometida para sequenciamento da região CDR3 do TCR. Observou-se uma grande diversidade na sequência do TCR das células artritogênicas, sendo que células T com TCR Vb6, Vb8.1/8.2 e Vb10 são capazes de induzir artrite em animais Rag2-/-. Entretanto, células Va2 e Vb6 são predominantes na articulação inflamada. O TCR destas células FoxP3-Va2 e Vb6 obtidas da articulação foi clonado e transfectado em células da medula, que foram posteriormente transferidas para animais Rag2-/-. Desta forma, foi possível obter camundongos com sequências artritogênicas no TCR das células T em desenvolvimento.
Observou-se então que camundongos que expressavam o TCR R7-39 apresentavam alta incidência e score patológico de AR, assim como alguns sinais de dermatite compatíveis com a psoríase humana. Posteriormente, determinou-se que o TCR R7-39 reconhece uma proteína de 18 kDa, identificada  por espectrometria de massa como 60S ribosomal protein L23a (RPL23A). Esta proteína, por sua vez, é expressa de forma ubíqua em camundongos e humanos, principalmente na pele e na articulação, por sinoviócitos.
Por fim, demonstrou-se que células T CD4+ de pacientes com AR produzem IFN-g e IL-17 quando estimuladas com RPL23A, assim como pacientes com AR ou psoríase apresentam anticorpos anti-RPL23A no soro. De forma interessante, em ensaios de supressão, foi observado que células T reguladoras não suprimem a resposta de células T efetoras contra RPL23A.
No geral, este trabalho sugere uma proteína ubíqua como um importante antígeno relacionado ao desenvolvimento de AR. Além disso, o modelo utilizado no trabalho permite a obtenção e caracterização de antígenos próprios que podem desencadear uma resposta autoimune mediada por células T.

Post de Gustavo Fernando da Silva Quirino (Mestrando IBA – FMRP/USP)

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Pré-posições


Em uma revisão do livro de Eliot Sober  “The nature of selection”, Smith (1986) escreve:
“Sober distingue entre a seleção de (alguma coisa ou fenômeno) e a seleção para. Ele ilustra esta diferença com um brinquedo com o qual uma sobrinha sua brincava. O brinquedo consiste em um cilindro de plástico transparente dividido em várias camadas horizontais contendo bolas de diversas cores:

“Cada nível horizontal do brinquedo contém buracos do mesmo tamanho. Os buracos em cada nível são maiores que os buracos no nível abaixo. As bolas também variam de tamanho. Se as bolas estão no compartimento superior, sacudir os  brinquedo colaca as bolas em seus respectivos níveis. Esta é um a máquina de selecionar. As bolas são selecionadas por seu tamanho. Mas todas as bolas de um dado tamanho são de uma dada cor. As menores bolas, e somente elas, são verdes. Então, o processo de seleção seleciona as bolas verdes porque elas são as menores.”

Embora seja correto dizer que houve seleção quer das menores bolas ou das bolas verdes, não se pode dizer que houve seleção para a cor verde. O brinquedo não seleciona as bolas de acordo com sua cor, mas sim de acordo com seu tamanho. Portanto, o conceito de “seleção para” é um conceito mais restritivo que “seleção de”. Isto ocorre porque a “seleção de” é parte dos efeitos do processo seletivo, enquanto que “seleção para” descreve suas causas.”

Diferentemente de Eliot Sober, Humberto Maturana e Jorge Mpodozis propuseram uma teoria evolutiva com base em um processo que denominam “deriva natural”. Ao contrário dos defensores do criacionismo, eles não se opõem ao conceito de “seleção natural”, nem optam entre “seleção de” e “seleção para” mas dizem que a “seleção natural” é um efeito da deriva natural, e não seu mecanismo (Maturana and Mpodozis, 2000). Alguns seres vivos resultam selecionados na deriva natural. A seleção natural não é um mecanismo, mas sim o resultado de um mecanismo que é a “deriva natural”.

Segundo eles, a adaptação do ser vivo ao meio é uma condição de existência que não pode ser perdida em nenhum instante do viver. Todos os seres vivos estão sempre adaptados e não haveria seres vivos menos e mais aptos ao viver; portanto, não haveria pressões seletivas que conduziriam à sobrevivência dos seres mais aptos.

Segundo eles, o processo reprodutivo, que gera organismos com a mesma organização, mas estruturas diferentes (parecidos mas diferentes), necessariamente gera uma filogênese na qual as diferentes linhagens são conservadas enquanto outras mudam e dão origem a outras linhagens. Esta variação e conservação se dão como resultados do viver. Os seres vivos variam continuamente como resultado de suas interações (aquilo que se passa com eles) e de sua própria dinâmica interna  (aquilo que se passa neles). O somatório desta variação faz com que alguns aspectos de seu viver (de sua estrutura e de sua conduta) sejam conservados enquanto outros aspectos mudam. Mpodozis insiste em que, desde que a variação estrutural é uma condição de existência no viver – o ser vivo morre se cessarem estas mudanças (estruturais e condutuais) – o que importa não é explicar a mudança, mas sim explicar aquilo que se conserva, e pergunta:
“Como se conserva aquilo que se conserva naquilo que muda?” (Mpodozis, 2011)

Isto afeta significativamente o pensamento na imunologia, até hoje dominada por teorias seletivas. A seleção clonal passa a ser vista como um resultado da atividade imunológica e não como seu mecanismo. A preocupação de desloca do estudo daquilo que varia (as respostas imunes específicas, a memória imunológica) para aquilo que é conservado. Mas o que é conservado na atividade imunológica?

Para notar aquilo que é conservado na atividade imunológica é necessário analisar o que se passa em conjuntos de linfócitos ou de imunoglobulinas, e não em clones isolados ou anticorpos monoclonais. É necessário analisar a interação de conjuntos de imunoglobulinas naturais, presentes no soro não fracionado de um animal normal, com misturas complexas de ligantes, como extratos de órgãos ou culturas bacterianas (Nobrega et al., 2002) , ou microarrays nos quais um braço robótico arrumou centenas de proteínas diferentes (Cohen, 2013). Quando isto é feito se constata a presença de perfis ou padrões de reatividade que são robustamente conservados (Mouthon et al., 1996).

Este é um exemplo notável “daquilo que se conserva naquilo que muda” porque o organismo substitui continuamente as populações de linfócitos ativados e, portanto, as imunoglobulinas presentes no soro normal variam continuamente. A despeito desta variação, quando analisadas em conjunto, vemos que seus padrões de reatividade são conservados. “Como se conserva aquilo que se conserva naquilo que muda?” (Mpodozis, 2011). A conservação de uma individualidade a despeito da contínua variação inerente ao viver é um dos maiores enigmas da Biologia (Buss, 1987)

Buss, L.W. The Evolution of Individuality.
            Princeton: Princeton University Press, 1987.
Cohen, I. R. "Autoantibody Repertoires, Natural Biomarkers, and System Controllers." Trends Immunol 34, no. 12 (2013): 620-625.
Maturana, H and J. Mpodozis. "The Origin of Species by Means of Natural Drift." Revista Chilena de Historia Natural 73:261-310 (2000) 73,  (2000): 261-310.
Mouthon, L., S. Lacroix-Desmazes, A. Nóbrega, C. Barreau, A. Coutinho and M. D. Kazatchkine. "The Self-Reactive Antibody Repertoire of Normal Human Serum Igm Is Acquired Early in Childhood and Remains Conserved Throughout Life." Scand J Immunol 44,  (1996): 243-251.
Mpodozis, J.M. "A Equação Fundamental Da Biologia." In Vaz , N.M., Mpodozis, J.M., Botelho, J.F. And Ramos, G.C. "Onde Está O Organismo? - Derivas E Outras Histórias Na Biologia E Na Imunologia., edited by Editora-UFSC, 25-44. Florianópolis SC Brasil: Editora UFSC, 2011.
Nobrega, A., B. Stransky, N. Nicolas and A. Coutinho. "Regeneration of Natural Antibody Repertoire after Massive Ablation of Lymphoid System: Robust Selection Mechanisms Preserve Antigen Binding Specificities." J Immunol 169, no. 6 (2002): 2971-8.
Smith, Terry L. "Biology as Allegory: A Review of Elliott Sober's the Nature of Selection'." Exp Anal Behav. 46, no. 1 (1986): 105-112.
Sober, Elliot. The Nature of Selection. Evolutionary Theory in Philosophical Focus. Cambridge, Mass: MIT Press, 1985.


Nelson Vaz <nvaz@icb.ufmg.br>

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Mais um papel biológico descrito para o ômega-3


 

                         https://derepente3.files.wordpress.com/2013/11/iglu-2024.jpg

Não há dúvidas de que a observação de fenômenos tem grande importância para a evolução da ciência. E foi dessa forma - através da observação - que nos anos 80 os benefícios do consumo de ácidos graxos poliinsaturados n-3 (ômega-3) começaram a ser estudados. Foi a baixa incidência de doenças de caráter inflamatório numa população de esquimós da Groelândia que deu os primeiros indícios das atividades imunomoduladoras dos ômegas-3.

Atualmente já estão descritos mecanismos que auxiliam-na compreensão dos diferentes efeitos observados com a suplementação de dietas com ômega-3. Muitos deles decorrem diretamente da incorporação do ômega-3 nas membranas das células do sistema imunológico. Isso se deve a substituição parcial do ácido araquidônico da membrana plasmática pelos ácidos docosahexaenóico (DHA) ou eicosapentaenóico (EPA), os principais ômegas-3 com atividade biológica. Contudo, apesar de já terem se passados décadas de estudos, os mecanismos de ação dos ômegas-3 ainda não são completamente conhecidos. O título de uma revisão publicada em 2013 pelo Philip Calder ilustra bem esse fato: n-3 fatty acids, inflammation and immunity: new mechanisms to explain old actions [1].

O vírus do papiloma humano (VPH ou HPV, do inglês “human papiloma virus”) é um vírus que infecta os queratinócitos da pele ou, mucosas, e possui mais de 200 variações diferentes. A maioria dos subtipos está associada a lesões benignas, tais como verrugas, mas certos tipos são frequentemente encontrados em determinadas neoplasias como o cancro do colo do útero, do qual se estima que sejam responsáveis por mais de 90% de todos os casos verificados. O governo brasileiro deu inicio em 10 de março de 2014 uma campanha para vacinar meninas de 11 a 13 anos gratuitamente, nas escolas públicas e privadas e nos postos de saúde. Em 2015, a cobertura incluirá as meninas de nove a 11 anos. A partir de 2016, a ação ficará restrita às garotas de nove anos.

De uma forma geral, o HPV possui no seu genoma vários genes que são expressos numa fase inicial. Alguns destes, concretamente os genes E6 e E7, foram classificados como oncogenes pela sua capacidade de induzir a transformação maligna das células infectadas. O E6 e E7 codificam oncoproteínas que têm como alvo as proteínas p53 e Rb respectivamente, que são proteínas codificadas por genes supressores tumorais. O Rb (gene do retinoblastoma) impede a célula de prosseguir a divisão celular, ao bloquear o factor de transcrição E2F. A p53 tem o mesmo efeito ao aumentar a expressão de p21, além de também desencadear a apoptose em casos de dano extenso ao ADN. Basicamente, os genes E6 e E7 induzem a divisão celular e evitam a apoptose.

O artigo de Jing e colaboradores publicado recentemente na Cell Death and Disease, um periódico vinculado à nature publishing group, demonstra parte do mecanismo de ação do DHA sobre células infectadas por HPV- 16 e 18. Por meio de estudos in vitro os autores mostraram que o DHA induz apoptose de células infectadas por HPV bem como a degradação das oncoproteínas virais E6/E7. As oncoproteínas E6/E7 atuam inibindo as proteínas de controle do ciclo celular p53 e Rb, respectivamente, e assim são responsáveis pelo fenótipo maligno das células cancerosas infectadas por HPV.

Nas células estudadas o DHA estimula o acúmulo de espécies reativas de oxigênio (ROS) primariamente através da superprodução de ROS mitocondriais, que levam a falência da mitocôndria e ativação do sistema ubiquitina-proteassoma. Como resultado, o processo de degradação das oncoproteínas virais E6/E7 por esse sistema é acelerado. Além da superprodução de ROS, a disfunção da mitocôndria por si só também contribuí para a ativação do sistema ubiquitina-proteassoma induzido pelo DHA. A diminuição dos níveis de E6/E7 nas células tratadas com DHA mostrou-se associada com o aumento dos níveis nucleares de p53/Rb, que normalmente encontram-se indetectáveis nas células infectadas por HPV. A restauração dessas proteínas de controle do ciclo celular nas células infectadas por HPV tem sido caracterizada como o principal mecanismo de apoptose decorrente da repressão de E6/E7. Esses resultados identificam um novo papel do DHA, nesse caso envolvido diretamente com a regulação do sistema ubiquitina-proteassoma e proteínas virais (veja figura abaixo).
 Proposed model showing how DHA reduces the expression of the E6/E7 viral oncoproteins in oncogenic HPV-infected cancer cells. DHA stimulates cellular ROS accumulation primarily via inducing mitochondrial ROS overproduction, which leads to mitochondria failure and the activation of cellular UPS. As a result, the UPS-dependent degradation of E6/E7 viral proteins is accelerated. Note that mitochondrial dysfunction might contribute to the UPS activation induced by DHA (dashed line).

 
Referências:
[1]. Calder, PC. n-3 fatty acids, inflammation and immunity: new mechanisms to explain old actions. Proc Nutr Soc.  72(3):326-36. doi: 10.1017/S0029665113001031, 2013.
[2] Brito, Ricardo (22 de janeiro de 2014). SUS inicia em 10 de março vacinação contra HPV em meninas de 11 a 13 anos (em português) Estadão.
[3] K Jing el al., Docosahexaenoic acid induces the degradation of HPV E6/E7 oncoproteins by activating the ubiquitin–proteasome system. Cell Death and Disease 13;5:e1524. doi: 10.1038/cddis.2014.477, 2014.

 
Maria Isabel Lovo-Martins, doutoranda, ICC-Fiocruz, Pr.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 














 


 





 

domingo, 21 de dezembro de 2014

Repercussoma em 2014


Chegamos ao final de mais um ano! Uhuul ... As datas comemorativas se aproximam e aproveito esse momento oportuno para refletir sobre aquilo que mais gosto de estudar, o inflamassoma. Se fizermos uma retrospectiva, perceberemos que 2014 foi recheado de descobertas sensacionais, as quais se estendem desde a investigação de specks extracelulares de ASC até o reconhecimento do LPS citosólico pelo domínio CARD da caspase-11. E para fechar o ano com chave de ouro Wang e colaboradores demonstraram que os vírus de RNA promove a ativação do inflamassoma de Nlrp3 através da via de sinalização de Rip1 e Rip3. Na hora que eu li o título do trabalho eu logo pensei: Será que a necroptose, assim como a piroptose, também está relacionada com a ativação do inflamassoma? Pois bem meus caros amigos blogueiros, a resposta é que uma cascata de sinalização distinta da necroptose acontece.  O RNA citosólico derivado da infecção viral induz a formação do complexo Rip1/Rip3, que de forma independente de MLKL, fosforila a GTPase DRP1. DRP1, por sua vez, promove a inserção da proteína Fis1 na membrana externa da mitocôndria para que, assim, possa ser induzido o colapso da organela. Como consequência, tem-se o aumento dos níveis de espécies reativas de oxigênio e ativação do inflamassoma de Nlrp3. O mais legal é que se puxarmos todo nosso conhecimento da memória chegaremos à conclusão de que esse mecanismo atua de maneira diferente dos já bem estabelecidos ativadores do inflamassoma de Nlrp3. Não é tudo MUITO interessante?


Figura 1 – A fissão mitocondrial, iniciada pelo complexo Rip1/Rip3, “abastece” o inflamassoma de Nlrp3.


Comentário:

Rayamajhi, M. and Miao, E. The RIP1-RIP3 complex initiates mitochondrial fission to fuel NLRP3. Nature News and Views. 2014. doi:10.1038/ni.3030.

Post de Natália Ketelut (doutoranda FMRP/USP – IBA)