Por Thiago Carvalho, do Instituto Gulbenkian de Ciência
O rato-toupeira perdeu muita coisa - os pelos, a visão e até mesmo a capacidade de regular a temperatura corporal - mas ganhou uma longevidade fora do normal. |
“De todas as
aberrações sexuais, a castidade é a mais estranha”*, e, do ponto de vista da
biologia evolutiva, a abstinência sexual por grande parte (na verdade pela
vasta maioria) dos indivíduos de algumas espécies é dos problemas mais antigos.
Os insectos sociais foram uma grande dor de cabeça para Charles Darwin, que criava
abelhas em casa, em Down House. Em cartas aos amigos, Darwin confessava um
certo grau de desespero em relação à capacidade da sua teoria da evolução por
seleção natural de explicar a origem das espécies que hoje chamamos de
eusociais. Ainda hoje, o tema é alvo de intensas discussões, como se viu
recentemente quando um artigo na revista “Nature” assinado pelo patriarca da
área, Edward Wilson, em colaboração com o matemático Martin Nowak, lançou o que
alguns chamariam de acalorado debate, e já outros, talvez mais adequadamente,
classificariam de grossa pancadaria.
A divisão de
trabalho que segrega a reprodução num número muito reduzido de fêmeas (e uns
poucos machos eleitos como parceiros sexuais)- frequentemente apenas uma por colónia-
lembra-nos sempre os seus exemplos clássicos, as abelhas e formigas, e,
forçando mais a memória, os térmitas. Com algumas raras exceções, esse era o status quo em 1974 quando o entomólogo
Richard Alexander especulou em publico sobre quais seriam as características de
um hipotético mamífero eusocial:
‘“(...) um roedor
que habitaria uma região quente e seca da África em tocas subterrâneas se
alimentando de grandes tubérculos”. Um biólogo presente na platéia mais tarde
disse a Alexander “O seu mamífero hipotético é uma descrição perfeita do
rato-toupeira-pelado”.’(1)
Heterocephalus glaber aos poucos tornou-se famoso pela sua vida em colônias
que podem atingir os 300 indivíduos, com uma rainha e seus poucos consortes. As
redes de túneis construídas por uma única colônia podem ocupar uma área
equivalente a seis campos de futebol, com mais de 3 quilômetros de túneis. À
medida que a espécie foi sendo mais estudada surgiram vários aspectos curiosos,
como uma tolerância extrema a dor, um dimorfismo entre operários e
reprodutoras, e um mapa somatosensorial dominado pelos enormes incisores (para
os imunologistas de uma outra época, imaginem o homúnculo de Irun Cohen com
dentes monstruosos). No entanto, a maior surpresa surgiu quando grupos de
pesquisa e jardins zoológicos começaram a estabelecer colônias em cativeiro.
O rato-toupeira-pelado,
um roedor com peso médio rondando as 25-35 gramas (as rainhas são consideravelmente
maiores), tem uma expectativa de vida que ultrapassa os 28 anos sem mostrar
sinais agudos de declínio fisiológico ou aumento de mortalidade (uma das
definições técnicas do que seria o envelhecimento). Foi aqui que H. glaber saltou de objecto de estudo da
zoologia para estrela da biologia molecular. A hipótese mais em voga foi
imediatamente testada, e imediatamente rejeitada. A idéia sensata de que o
animal teria níveis baixos de stress oxidativo, ou excelentes antioxidantes
endógenos, foi investigada da maneira mais direta: fracionando bioquimicamente
as suas proteínas, lipídios, e ácidos nucléicos e medindo seu grau de oxidação.
A resposta foi o oposto da esperada: o nível basal de danos oxidativos às três
classes de moléculas era mais elevado nos ratos-toupeira do que nos outros
roedores- a diferença é que, ao contrário do que os autores verificam nos
camundongos, estes danos não aumentam com a idade.(2)
A principal causa
de mortalidade natural das estirpes de camundongos mais usadas, como os C57BL/6,
é o câncer. Nos tratamentos que prolongam a vida nos roedores tem sido intenso
o esforço para separar os efeitos diretos no envelhecimento dos que previnem
neoplasias. Até hoje não foram detectados tumores espontâneos em H. glaber e mesmo seus fibroblastos
transfectados com oncogenes (Ras ativado e SV40 LT) não exibem características
de células transformadas invasivas. Em 2009, Andrei Seluanov e seus
colaboradores verificaram que além disto, as células do rato-toupeira exibem em
cultura uma inibição de crescimento por contato robusta, e ativada a densidades
celulares inferiores às de células de outras espécies de mamífero.
Finalmente, Tian e colaboradores demonstraram que a degradação do HA, ou o bloqueio da sua interação com o CD44, elimina o aumento da inibição do crescimento celular em cultura e, mais dramaticamente, torna os fibroblastos de rato-toupeira suscetíveis à transformação maligna após a introdução de transgenes para SV40 LT e Ras ativado. A origem deste fenótipo talvez não tenha nada a ver com a resistência a tumores. Os autores consideram que a sua mais provável explicação funcional estaria na grande flexibilidade e elasticidade que esta variante da matriz extracelular confere aos tecidos, em particular à pele do animal. Resta ainda saber se a extraordinária longevidade do rato-toupeira-pelado se deve também em parte a esta adaptação.
Woody Allen dizia que “you can live to be a hundred if you give up all the things that make you want to live to be a hundred”. Careca, cego e casto. É a vida do Matusalém dos mamíferos.
*Remy de
Gourmont.
1) Cohn, JP 1992.
“Naked mole-rats”. BioScience, 42(2).
2) Perez, VI et
al 2009. “Protein stability and resistance to oxidative stress are determinants
of longevity in the longest living rodent, the naked mole-rat”. PNAS, 106(9),
3059-3064.
3) Seluanov, A et
al, 2009. “Hypersensitivity to contact inhibition provides a clue to cancer
resistance of naked mole-rat.” PNAS 106 (46), 19352-19357.
4) Tian, X et al,
2013. “High-molecular-mass hyaluronan mediates
the cancer resistance of the naked mole rat.” Nature, 499 (7458),
346-349.
Muito bom!
ResponderExcluirSerá possível alterar o HA sem causar os "efeitos colaterais"?
ResponderExcluirNão sei se o HA era o melhor alvo do ponto de vista terapeutico- talvez no pos operatorio nas bordas de um tumor solido fosse possivel aplicar um "Gel-matriz"; mas acho que faria mais sentido investigar o potencial de agonistas do CD44, se a administracao sistemica nao for toxica.
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