sexta-feira, 12 de julho de 2013

Na Caverna de Pandora

Por Thiago Carvalho, Instituto Gulbenkian de Ciência, Portugal


Raiva, hendra, nipah, ebola, marburg, melaka, SARS.  E o pulso ainda pulsa (1). Ou não - afinal algumas destas infecções têm taxas de mortalidade que por vezes ultrapassam os 90% no hospedeiro humano. Em alguns casos, com uma violência e rapidez que nâo combinam muito com o próprio termo “hospedeiro”, já que o vírus não chega a ficar hospedado muito tempo. Estes vírus emergentes têm em comum o seu reservatório natural, a ordem Chiroptera, literalmente mão com asa, ou mais popularmente, os morcegos. Estima-se que entre 60-80% das infecções emergentes tenham origem ou nos morcegos ou nos roedores (2). A sobreposição destas duas ordens não tem nada a ver com parentesco: os “ratos-alados” são mais filogeneticamente próximos de nós (primatas) do que dos roedores, apesar das aparências ao contrário. 

Crédito: WikiMedia Commons
 
 Apesar de serem pequenas caixas de pandora aladas, são raros os casos descritos de doenças sintomáticas causadas por estes agentes virais nos morcegos (3). Outras pistas sugerem que há algo de especial na resposta a parasitas genômicos dos quirópteras, especialmente níveis anormalmente altos de transposição recente, associados a uma diversificação taxonômica e morfológica significativa (4). Do ponto de vista teórico, já se previa que os morcegos seriam tolerantes a um alto grau de danos oxidativos - uma consequência da alta taxa metabólica necessária para o voo sustentado. Os morcegos associam a este potente metabolismo energético uma longevidade impressionante, com espécies atingindo ou ultrapassando os 30 anos de vida, o que sugere uma tolerância celular elevada (5).

Agora Zhang e colaboradores nos oferecem na Science uma contribuição importante para compreender este fenômeno: o genoma completo de representantes dos dois grandes grupos de morcegos, os megachiroptera e microchiroptera (6). O caráter robusto do sistema de reparo e vigilância de DNA nos morcegos salta logo a vista nesta análise - vários genes que conhecemos da boa e velha recombinação VDJ apresentam sinais de seleção positiva nos morcegos, entre eles ATM e Ku80 nos dois grupos, p53 em microquiróptera e Ligase-4 em macroquiróptera. Também sob seleção positiva, e na interface entre a resposta a danos de DNA e a resposta antiviral, estão alguns dos genes da família NFkB. Uma peça possivelmente importante no quebra-cabeça da resistência à infecção viral é a deleção de uma família gênica envolvida na formação do inflamassomo, os genes PYHIN.

Como disse a agência Reuters um dos autores do estudo, Lin-Fa Wang, “Os vírus raramente matam o hospedeiro. Quem mata é a resposta imune do hospedeiro. O que parece é que os morcegos suprimem a resposta inflamatória.” Uma supressão que talvez tenha altos custos associados na resistência a outros patógenos - como a recente epidemia fúngica na América do Norte, onde o número de indivíduos mortos já talvez passe dos 6 milhões. É interessante que tudo isto pode ter sido um efeito colateral da mesma pressão seletiva, isto é, do aumento da eficiência metabólica e de reparo de DNA associada à acquisição da capacidade de voo, pois em outras espécies de mamíferos membros da família PYHIN estão implicados no controle do ciclo celular.

Além do interesse científico puro, este trabalho abre possibilidades interessantes de pesquisa nas patologias virais agudas. As infecções emergentes estão em geral fora do cenário co-evolutivo de tolerância, imunidade, ou virulência reduzida, típica das relações mais de longo prazo (ainda assim “acomodações” que as vezes ainda dão muito errado, com morte de um dos cônjuges, ou de um cônjuge e uma população de bilhões de cônjugesinhos). Representam invasões de um novo hospedeiro, e por isso mesmo muitas vezes fazem exatamente o que a teoria prevê: extinguem-se em eventos fulminantes, sem maiores consequências para a evolução do patógeno ou do hospedeiro. Examinar as relações mais estáveis de agentes devastadores como o Ebola com outros mamíferos promete novas ideias terapêuticas para estas infecções que se tornam cada vez mais frequentes com a degradação e invasão de novos ambientes.

CRÉDITO IMAGEM: WikiMedia Commons.

(1) Com as minhas desculpas aos Titãs https://www.youtube.com/watch?v=1eixKc_6fbo

(2) Morens, D. & A. Fauci. “Emerging Infectious Diseases: Threats to Human Health and Global Stability” PLoS Pathog 9(7): e1003467. doi:10.1371/journal.ppat.1003467.

(3) Wang, LF et al., “Mass extinctions, biodiversity and mitochondrial function: are bats 'special' as reservoirs for emerging viruses?” Curr Opin Virol 2011, Dec 1(6):649-57.

(4) Ray, D.A. et al., “Multiple waves of recent DNA transposon activity in the bat, Myotis lucifugus” Genome Res. 2008, 18, 717-28.

(5) Lane N. “The costs of breathing.” Science 334: 184-185; 2011.

(6) Zhang, G. et al. Comparative analysis of bat genomes provides insight into the evolution of flight and immunity. Science 339, 456–460 (2013)

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