Raiva, hendra, nipah, ebola, marburg, melaka, SARS. E o pulso ainda pulsa (1). Ou não - afinal algumas destas infecções têm taxas de mortalidade que por vezes ultrapassam os 90% no hospedeiro humano. Em alguns casos, com uma violência e rapidez que nâo combinam muito com o próprio termo “hospedeiro”, já que o vírus não chega a ficar hospedado muito tempo. Estes vírus emergentes têm em comum o seu reservatório natural, a ordem Chiroptera, literalmente mão com asa, ou mais popularmente, os morcegos. Estima-se que entre 60-80% das infecções emergentes tenham origem ou nos morcegos ou nos roedores (2). A sobreposição destas duas ordens não tem nada a ver com parentesco: os “ratos-alados” são mais filogeneticamente próximos de nós (primatas) do que dos roedores, apesar das aparências ao contrário.
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Apesar de serem pequenas caixas de pandora aladas, são
raros os casos descritos de doenças sintomáticas causadas por estes agentes
virais nos morcegos (3). Outras pistas sugerem que há algo de especial na
resposta a parasitas genômicos dos quirópteras, especialmente níveis
anormalmente altos de transposição recente, associados a uma diversificação
taxonômica e morfológica significativa (4). Do ponto de vista teórico, já se
previa que os morcegos seriam tolerantes a um alto grau de danos oxidativos -
uma consequência da alta taxa metabólica necessária para o voo sustentado. Os
morcegos associam a este potente metabolismo energético uma longevidade
impressionante, com espécies atingindo ou ultrapassando os 30 anos de vida, o
que sugere uma tolerância celular elevada (5).
Agora Zhang e colaboradores nos oferecem na Science uma contribuição importante para
compreender este fenômeno: o genoma completo de representantes dos dois grandes
grupos de morcegos, os megachiroptera e microchiroptera (6). O caráter robusto
do sistema de reparo e vigilância de DNA nos morcegos salta logo a vista nesta
análise - vários genes que conhecemos da boa e velha recombinação VDJ apresentam
sinais de seleção positiva nos morcegos, entre eles ATM e Ku80 nos dois grupos,
p53 em microquiróptera e Ligase-4 em macroquiróptera. Também sob seleção
positiva, e na interface entre a resposta a danos de DNA e a resposta antiviral,
estão alguns dos genes da família NFkB. Uma peça possivelmente importante no
quebra-cabeça da resistência à infecção viral é a deleção de uma família gênica
envolvida na formação do inflamassomo, os genes PYHIN.
Como disse a agência Reuters um dos autores do estudo,
Lin-Fa Wang, “Os vírus raramente matam o hospedeiro. Quem mata é a resposta
imune do hospedeiro. O que parece é que os morcegos suprimem a resposta inflamatória.”
Uma supressão que talvez tenha altos custos associados na resistência a outros
patógenos - como a recente epidemia fúngica na América do Norte, onde o número
de indivíduos mortos já talvez passe dos 6 milhões. É interessante que tudo
isto pode ter sido um efeito colateral da mesma pressão seletiva, isto é, do
aumento da eficiência metabólica e de reparo de DNA associada à acquisição da
capacidade de voo, pois em outras espécies de mamíferos membros da família
PYHIN estão implicados no controle do ciclo celular.
Além do interesse científico puro, este trabalho abre
possibilidades interessantes de pesquisa nas patologias virais agudas. As
infecções emergentes estão em geral fora do cenário co-evolutivo de tolerância,
imunidade, ou virulência reduzida, típica das relações mais de longo prazo
(ainda assim “acomodações” que as vezes ainda dão muito errado, com morte de um
dos cônjuges, ou de um cônjuge e uma população de bilhões de cônjugesinhos).
Representam invasões de um novo hospedeiro, e por isso mesmo muitas vezes fazem
exatamente o que a teoria prevê: extinguem-se em eventos fulminantes, sem
maiores consequências para a evolução do patógeno ou do hospedeiro. Examinar as
relações mais estáveis de agentes devastadores como o Ebola com outros
mamíferos promete novas ideias terapêuticas para estas infecções que se tornam
cada vez mais frequentes com a degradação e invasão de novos ambientes.
(1) Com as minhas desculpas aos Titãs https://www.youtube.com/watch?v=1eixKc_6fbo
(2) Morens, D. & A. Fauci. “Emerging Infectious Diseases: Threats to Human Health and Global Stability” PLoS Pathog 9(7): e1003467. doi:10.1371/journal.ppat.1003467.
(3) Wang, LF et al., “Mass extinctions, biodiversity and mitochondrial function: are bats 'special' as reservoirs for emerging viruses?” Curr Opin Virol 2011, Dec 1(6):649-57.
(4) Ray, D.A. et al., “Multiple waves of recent DNA transposon activity in the bat, Myotis lucifugus” Genome Res. 2008, 18, 717-28.
(5) Lane N. “The costs of breathing.” Science 334: 184-185; 2011.
(6) Zhang, G. et al. Comparative analysis of bat genomes provides insight into the evolution of flight and immunity. Science 339, 456–460 (2013)
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