sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Cérebro Besuntado


Moqueca de Camarão com leite de coco e azeite de dendê

Certas ideias em “ciência” são efêmeras. No entanto, quando surgem, passam sobre os preceitos mais sólidos como se aqueles nunca houvessem, sequer, existido. Outro dia deparei-me no mercadinho da vila com uma pilha de óleo de coco. Pensei que fosse para cozinhar, passar na pele ou no cabelo ou ainda qualquer outro fim, exceto a esquisitice que ouvi na rede de TV: “O consumo de uma ou duas colheres das de sobremesa desse óleo por dia pode render-te alguns quilos a menos em pouco tempo!” afirmava o entrevistado, de importante Universidade brasileira, ao programa doméstico.
Absorto, observei os constituintes do óleo e percebi que ali havia grande concentração de dois tipos principais de ácidos graxos, os ácidos láurico e mirístico, gorduras estas saturadas, com 12 e 14 carbonos em sua estrutura e respectivamente. Além disso, compunham este produto em cerca de 50% e 25% também respectivamente. Quando minha faculdade de origem cometeu a loucura em dar-me um diploma, lembro-me que saí de lá crendo que ácidos graxos de cadeia média, como os tais, eram absorvidos com facilidade pelo trato digestório humano, bem como, posteriormente, eram transportados diretamente para o interior da mitocôndria sem que houvesse a necessidade de alguma proteína de translocação, assim como é pertinente tal papel à carnitina palmitoil transferase (CPT-1) para outros tipos de ácidos graxos. Presumia-se que com essa entrada facilitada, a geração de energia seria também facilitada e mais robusta, assim como sua eliminação/degradação. E assim sacramentaram-me.
Sabendo que o mundo anda explodindo em obesidade, um dos mecanismos propostos mais aceitos atualmente para a compreensão de tal fenômeno é o fato de que o excesso de gordura saturada consumida pelos “comedores compulsivos” ativaria o receptor de sistema imune Toll-like receptor-4 (TLR-4). Com o receptor ativado, um disparo sinalizador ocorre de forma intensa rumo ao interior da célula, no intuito de iniciar uma resposta pró-inflamatória característica desta via. Mas se este receptor é de sistema imune, então estaríamos sendo infectados por comida? Na verdade, sim. Quando alguns tipos de gorduras são consumidos em grande quantidade, ainda que haja ausência de qualquer tipo bacteriano na alimentação, tais gorduras agem numa ação que simula a invasão de microorganismos. Isto ocorre devido ao fato de haver bastante semelhança entre a gordura que recobre a parede celular de bactérias, o chamado lipopolissacarídeo (LPS) e a gordura comumente encontrada em picanhas, manteigas, leites etc. Como os indivíduos obesos fazem consumo em grande quantidade desses alimentos, tais gorduras naturalmente presentes ali ativam o sistema imune como se houvesse a presença do microorganismo invasor.
Mas a situação é trágica, pois a resposta inflamatória apesar de ser de baixo grau é sistêmica, atingindo importantes tecidos como o sistema nervoso central. Lá, num lugar de difícil acesso, exatamente no meio e na base do cérebro encontra-se o hipotálamo, órgão responsável por perceber que nosso organismo está cheio ou vazio de nutrientes e nos fazer parar ou começar a comer. Concentrações super-ótimas de citocinas inflamatórias prejudicam a “percepção” hipotalâmica sobre a presença de nutrientes, nos permitindo comer incessantemente. Com isso, vagarosamente ganhamos peso e, a perpetuação deste mecanismo perverso se instala, pois a gordura acumulada em nosso corpo também é capaz de ativar este sistema.
Como sabemos, ainda que de “baixa intensidade”, a inflamação fora de controle ativa mecanismos apoptóticos. Portanto, neurônios hipotalâmicos morrem quando submetidos à presença constante e em grandes concentrações de ácidos graxos saturados oriundos da dieta. Querem piorar? Existe dois tipos de neurônios controladores da fome no hipotálamo, os orexigênicos (que nos dão fome) e os anorexigênicos (que nos fazem parar de comer). Indivíduos propensos à obesidade apresentam morte intensa em neurônios do tipo anorexigênico! Pasmem!
Nesse ínterim podemos nos perguntar: --Quem poderá nos salvar? Infelizmente a resposta não está numa cápsula milagrosa qualquer. A indústria farmacêutica está ainda muito distante de criar a pílula com razoáveis efeitos colaterais. Portanto, a única saída é: não se torne obeso! Coma direito e gaste calorias. Se vire para isso! Mas e aquele papo inicial da gordura milagrosa de coco, anunciada pelos gurus das “laureadas universidades” brasileiras e também mundiais, sabatinados e aprovados pela televisão e seus incautos telespectadores? Pobre povo. Não de agora, nem mesmo desta última década, pesquisadores se empenharam para melhorar as respostas antibióticas de drogas. Para isso estudaram incessantemente a composição de diversas bactérias e, até mesmo, do tipo de ácido graxo que compõe a fração LPS “lipo”-“polissacarídeo”, ou seja uma fração lipídica associada à diversos grupos de açúcares. É exatamente a fração lipídica do LPS a responsável pela ativação dos TLRs. Foi observado que os ácidos graxos que compõe de forma preponderante o LPS bacteriano, independente da patogenicidade do microorganismo, são os ácidos láurico, mirístico e palmítico. Nesta mesma ordem se dá o ranking de potência de ativação inflamatória. Ocorre ainda que, na natureza, ácidos graxos láurico e mirístico são raros, sendo sua principal fonte, o óleo de coco, aquele, dito “emagrecedor”.
Obviamente, enquanto cientistas olharem profundamente para seu microcosmo de forma desacoplada do cosmo todo, tais erros se perpetuarão. Acreditar que um benefício observado numa organela isolada, num sistema “in vitro”, como foi o caso da mitocôndria e aplicar tal hipótese para o “sistema humano” como um todo, pode ser fatal.
Cozinhar com óleo de coco pode ser interessante e certamente, saboroso! E não haverá problemas desde que feito de forma esporádica. Antes que estudos comprobatórios nos assegurem sobre tais fatos, então que o óleo de coco continue apenas intensificando a beleza dos cabelos da mulher brasileira, se é que ela precisa.

Dennys Esper Corrêa Cintra
Professor de nutrigenômica da UNICAMP

Referência
Carbohydr Res. 2003; 338(23):2431-47.

3 comentários:

  1. um risco que a maioria das pessoas não está ciente! vou postar nas redes sociais.

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  2. Seria interessante ter referências que embasem melhor as afirmações feitas. Pela estrutura dos componentes da parede de microrganismos (do que trata a referencia listada) podemos inferir que os ácidos graxos podem ter alguns efeitos como os indicados, o que é muito distante de que exerçam este papel e tenham efeito deletério.

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