segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

ACADEMIA E A FÁBRICA DE SARDINHAS

Pessoal, 

Aproveitando as (minhas) férias e um pouco tempo que tem sobrado, me deparei com este texto do Professor Rafael Alcadipani (Professor Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas) publicado na Revista O&S (Salvador, v.18 - n.57, p. 345-348 - Abril/Junho - 2011)

"A luta em uma guerra, a elaboração de plantações ou até mesmo o adestramento de animais requer que alguma forma de gerenciamento seja praticada. Por isso, não podemos pensar a sociedade, mesmo que a mais rudimentar, sem a função gestão. Não obstante, ensinamos aos nossos alunos dos cursos de graduação que o “pai” da administração é um engenheiro Norte-Americano que realizava, entre outras coisas, estudos de tempos e movimentos. Frederick Taylor não inventou a administração. Seu principal legado foi popularizar a racionalização extrema e metódica como sinônimo da melhor maneira de se administrar e gerar resultados em organizações. O taylorismo foi utilizado pelo mundo como a solução para os problemas das empresas ao, pretensamente, indicar a forma correta e certa de gerir. Apresentou-se como aplicável para todo e qualquer tipo de organização, não importando seu contexto e especificidades. Era, ainda, considerado neutro, ou seja, como um conjunto de ferramentas que favorece o melhor resultado, nada além disso. 

Depois do taylorismo, o mundo não cessou de ver modelos, maneiras e métodos que se apresentam como formas universais e corretas de se administrar. Na realidade, Taylor criou a primeira grande ideologia gerencial, o primeiro gerencialismo. Qualidade Total, Sistemas Integrados de Gestão, ISO-9000, Reengenharia são apenas algumas marcas do gerencialismo. Embora tais marcas mudem, a sua essência permanece a mesma: pretensão de aplicação universal, proposta de solução única para os diversos problemas, neutralidade política e a valorização do conhecimento do gestor em detrimento dos demais. O gerencialismo se propõe como a solução para a minimização dos inputs e a maximização dos outputs. O modelo corporativo, permeado pela ideologia gerencial, solidifi cou-se na contemporaneidade como “a maneira” de se fazer gestão. Organizações de todos os tipos devem ser efi cientes, efi cazes, os seus trabalhadores devem ser avaliados e cobrados constantemente. Esta é a maneira tida como a mais certa, a mais correta e, pasmem, até mesmo a mais justa de se gerir. Ou seja, a gestão da empresa passou a ser vista como a única forma correta de se fazer administração. 

O gerencialismo não fi cou circunscrito ao mundo empresarial e corporativo tradicional. Ele e seus modelos estão invadindo inúmeras esferas de nossa vida cotidiana. Hoje se espera, e há aqueles que inclusive defendem, que hospitais, ONGs, organizações fi lantrópicas, religiosas e até mesmo escolas e universidades sigam as normas e os ditames da gestão das empresas tradicionais. Assumimos que o processo de produzir conhecimento, cuidar de pessoas e lutar por causas humanas pode seguir as mesmas regras de gestão da produção em série de latas de sardinha. Passamos a gerir organizações com focos, objetivos e funções sociais totalmente diferentes como
se fossem fábricas de sabonete.

As peculiaridades do trabalho acadêmico

A função das escolas de ensino superior é criar e difundir conhecimento e este trabalho possui especifi cidades e complicações. Escrever um texto, por mais simples que seja, tende a levar o autor ao seu limite. A lógica do que se diz precisa estar clara, a novidade do que se pretende dizer, no caso de publicações científi cas, também. Na realidade, ao escrever um texto, o autor luta contra seus próprios fantasmas o tempo todo. Será que aquilo que escrevi faz sentido? Será que as idéias estão claras? A lógica do argumento está concatenada? Estou verdadeiramente convencido daquilo que digo? As minhas palavras transferem aquilo que realmente eu queria dizer? Eu sou bom o suficiente para escrever este texto? O que os outros vão achar do que escrevi? Estas são apenas algumas das questões que nos acompanham durante a escrita. Para a redação, é preciso pensar e repensar, escrever e reescrever. A produção do conhecimento impregna o seu autor. Quando se está escrevendo raros são os momentos de paz, pois idéias nos perseguem em todos os lugares que vamos. Muitas vezes, ficamos dias e dias na frente de um computador sem conseguir evoluir. Outras vezes passamos o dia todo escrevendo, apagando e reescrevendo o mesmo parágrafo. Trata-se de um processo diametralmente oposto ao de fazer gestão, cuja lógica do “apagador de incêndios” é dominante. 

A escrita é um processo extremamente laborioso, e não estar sob pressão de tempo é crucial. Na realidade, a escrita e o trabalho acadêmico seguem a lógica do artesanato, que é muito diferente da lógica da produção fordista ou toyotista típica do mundo corporativo. A escrita acadêmica envolve, via de regra, a realização de pesquisas, atividade de signifi cativa complexidade. A escolha de um tema, de um objeto, de um método, da maneira de coletar e analisar dados, de conseguir acesso são atividades extremamente demandantes quando realizadas de forma rigorosa. Mais uma vez, a distância da atividade gerencial cotidiana é notória, principalmente no que concerne à questão do uso do tempo. A difusão do conhecimento tampouco é atividade simples. Selecionar o conteúdo a ser ministrado, preparar a forma que isso será feito, maneiras que os alunos serão avaliados, ser capaz de criar uma dinâmica com a sala de aula que favoreça a aprendizagem, lidar com as próprias expectativas e com a dos alunos são atividades que requerem dedicação, cuidado, equilíbrio emocional e, sobretudo, paciência. Talvez, o mais importante do ensino é que infl uenciamos a maneira de os alunos compreenderem a realidade e até mesmo entender o que é a realidade. Afinal, ao descrever para nossos alunos como as coisas podem ser, estamos dizendo a eles como elas são. Não é à toa que a docência é uma das atividades mais nobres que há. 

Apesar da importância social, um professor recebe uma remuneração inferior a de pessoas com qualifi cação semelhante em outras profi ssões. O pagamento pouco atrativo tendia a ser compensado pela liberdade de pensar, a ausência de hierarquiaformal rígida, as menores pressões externas, o prazer de ensinar e pesquisar, a liberdade do próprio tempo. Ou seja, a realização pessoal e a possibilidade de um trabalho que foge das pressões das ocupações tradicionais compensavam a ausência de recompensas pecuniárias mais diretas. Porém, a invasão da lógica gerencial nas organizações educacionais está gerando um habitat bastante inóspito para o acadêmico e vocação.

Academia inóspita

O autor deste artigo, em conjunto com Ricardo Bresler, advertiu em 1999 que as faculdades e universidades brasileiras passavam por um nítido processo de McDonaldização. Cursos enlatados, o esvaziamento da refl exão, os ataques à liberdade acadêmica, a busca por ensinar aquilo que supostamente funciona, o uso desenfreado de apostilas, a transformação do aluno em cliente, a difusão de formas de avaliação de desempenho de professores similares a de empresas e a quantifi cação da produção acadêmica já eram traços do ensino superior brasileiro em 1999. De lá para cá, a situação apenas se agravou. A academia está prestes a virar fast-food. O modelo gerencial passou a ser visto como a solução para os problemas das organizações educacionais. Começou-se a desenvolver avaliações de desempenho de professores que mimetizam os processos de avaliação de executivos, os planos de carreira estão cada vez mais próximos ao de empresas, os alunos passaram a ser vistos como clientes e os cursos como produtos. 

Inseridos em tal lógica, professores são premiados ou punidos, muitas vezes, levando-se como fundamento principal a pesquisa da satisfação dos alunos com relação ao curso ministrado pelo professor. Tais avaliações discentes seguem uma lógica que não difere muito da lógica das pesquisas de satisfação de clientes que acabam de consumir um produto. A transformação do aluno em cliente transformou o professor em um mero prestador de serviços, muitas vezes subtraindo dele as funções de educador e o forçando a ser um “animador de auditório”. O problema do aluno-cliente é que a lógica do ensino-aprendizagem é subvertida pela lógica do consumo-satisfação que, muitas vezes, destoa da formação de um sujeito reflexivo e maduro. Diante do cliente, o professor-prestador de serviço não deve medir esforços para satisfazê-lo. A conseqüencia mais típica é o estabelecimento dos “pactos de mediocridade” em que o aluno finge que apreende e o professor que ensina. 

Outro problema grave é que na lógica gerencial-empresarial o que vale é a produtividade mensurada por números. No Brasil, produção acadêmica se transformou em sinônimo de fazer pontos. Balizada pela tabela de pontuação de produção acadêmica da CAPES, o trabalho de pesquisa tem sido medido pela quantidade de pontos que o professor consegue fazer por ano. Assim, a lógica está cada vez mais em produzir o máximo possível de artigos para fazer o máximo de pontos. Rankings com nomes e pontos de professores são produzidos e distribuídos nas secretarias dos programas de pós-graduação em todo o país. 

Não é incomum pesquisadores produzirem cinco ou seis artigos em uma mesmo ano. A perversidade deste sistema chegou a tanto que a noção de autoria, tão cara a uma academia que se pretende séria, está à beira de ser desvirtuada, principalmente quando pessoas assinam artigos que não leram. Não é incomum vermos alunos serem coagidos a colocar o nome de orientadores em artigos e trabalhos que jamais foram lidos pelo orientador. Na lógica da academia produtivista, o tempo para reflexão é deixado de lado, a formação de alunos é escamoteada e o desenvolvimento intelectual significa apenas números em uma tabela. 

Os alunos socializados neste sistema encaram a produção acadêmica como um fim em si mesmo, fazendo parte de uma geração que não pesquisa a fundo, não apreende e não se desenvolve; apenas publica. A publicação que deveria ser a coroação de um trabalho sério e diligente de pesquisa e refl exão está se transformando em uma mera numerologia da academia McDonald´s onde tudo deve ser quantifi cado dentro da lógica da quantidade como sinônimo de qualidade. Avaliar o trabalho de produção acadêmica em triênios é um acinte. É muito pouco tempo para que um projeto verdadeiramente intelectual se desenvolva e gere frutos. Trata-se da imposição da lógica do tempo empresarial taylorista-fordista em algo que é essencialmente artesanal. 

No mundo gerencial, a crítica e a refl exão deve sempre ser “construtiva”. O mal estar do problema exposto sempre deve dar lugar a uma rápida solução. Com a transplantação da lógica corporativa para as organizações de ensino, o horror à crítica se estabelece. O questionamento das diretrizes estabelecidas e as perguntas inoportunas são cada vez mais mal vistas na academia “fábrica de sardinha em lata”. Os que questionam são logo estigmatizados como causadores de problema e a sua opinião é, simplesmente, deixada de lado. A crise dos intelectuais não está apenas no seu papel social. A intelectualidade está em xeque também dentro do mundo acadêmico que passa cada vez mais por um processo de “higienização”, no qual o suposto mal odor da crítica deve dar lugar a esterilidade do consenso mudo e da crítica propositiva. Neste contexto, a liberdade acadêmica entra em xeque. A ironia é que o gerencialismo invade o mundo educacional em sua faceta mais tradicional e menos elaborada, uma vez que a gestão acadêmica sob sua égide tende a ser quase taylorista-fordista.

Outro modelo é preciso

Antes do modelo produtivista, a academia vivia sob o império da cátedra. O professor com certa senioridade assumia uma posição vitalícia e de lá reinava absoluto e soberano. A renovação era improvável e a fossilização tendia a ocorrer. Para se preservar a liberdade acadêmica de um gerava-se a submissão de outros. Os periódicos eram, muitas vezes, clubes fechados onde poucos podiam publicar e o acadêmico nunca era avaliado por ninguém. A crítica ao modelo atual não signifi ca o desejo do retorno à sociedade da corte. Sem dúvida, o modelo anterior era inadequado e injusto. Não resta dúvida que os professores e pesquisadores precisam “publicizar” o que fazem. A produção de um artigo ou de um livro, quando é resultado de um amadurecimento intelectual, é sinônimo de desenvolvimento intelectual. Em um processo de diálogo com os pares, muito se apreende. Uma aula, quando bem preparada e ministrada, é gratificante para alunos e professores. 

Porém, o gerencialismo quando aplicado ao ensino e a pesquisa corrói a essência da produção e divulgação do conhecimento. O problema da inserção da lógica gerencial no meio educacional é que ela passa a impor um “ethos” corporativo para um tipo de atividade que pouco ou nada tem a ver com o mundo das empresas. O professor precisa ter tempo para amadurecer suas idéias. Precisa de liberdade para expor seus pontos de vista sem ter que se preocupar em agradar um cliente ou um patrão.
Precisa desenvolver seu trabalho de pesquisa com a tranqüilidade de que se ele não fizer um número certo de pontos por ano não será excluído. O professor precisa ter a tranqüilidade de que quando ele atingir certo nível de desenvolvimento intellectual e senioridade em uma dada área, ele não será descartado por não fazer pontinhos. A academia precisa, urgentemente, rever o caminho que está trilhando, pensar em uma nova maneira de se organizar que leve em consideração as suas peculiaridades e sua finalidade social. Deixar a nobre tarefa de produzir e divulgar conhecimento para a lógica das fábricas de sardinha é antes de qualquer coisa um desperdício."

* PhD pela Manchester Business School – The University of Manchester. Professor Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas – EAESP/FGV. Endereço: Rua Itapeva, 474 – 11º andar. São Paulo/SP. CEP: 01332-000. E-mail:Rafael.Alcadipani@fgv.br

o&s - Salvador, v.18 - n.57, p. 345-348 - Abril/Junho - 2011
www.revistaoes.ufba.br



Abraços

Um comentário:

  1. Aqui na minha cidade, as organizações academicas fizeram pacto de mediocridade. As pessoas de um grupo específico não estão evitando conflitos de interesses pessoal, com o passado institucional e financeiro em todos os aspectos. Senti isso na pele, e é uma pena que o poder de minha palavra não tenha peso.

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