quarta-feira, 30 de maio de 2012

Médicos e cientistas


No começo de maio saiu um blog na Science de autoria da Beryl Benderly (http://sciencecareers.sciencemag.org/career_magazine/previous_issues/articles/2012_05_04/caredit.a1200049) sobre a diferença entre as carreiras de médicos e cientistas, especificamente em relação à situação do mercado de trabalho e remuneração aqui nos EUA. Acho que é uma pergunta que muita gente se faz: porque um cientista e um médico, que em termos de treinamento e requisitos, não são tão diferentes, tem uma perspectiva tão diferente de carreiras? Me concentro aqui nos EUA – um médico aqui tem muito mais chance de encontrar um emprego fixo, com um salário alto, do que um cientista, especialmente na área biológica.

No blog da Science a Beryl cita na origem desta discrepância 2 estudos que se tornaram a base da política aqui nos EUA, e que fui dar uma olhada de curiosidade: o primeiro, sobre as escolas de medicina, publicado em 1910, é chamado Flexner Report (http://www.carnegiefoundation.org/sites/default/files/elibrary/Carnegie_Flexner_Report.pdf). Entre as conclusões (isto em 1910): 1. Existe uma enorme superprodução de médicos mal qualificados, resultando em uma proporção maior de médicos por habitantes nos EUA do que em paises “antigos” como a Alemanha. 2. Este aumento provém de um grande número de escolas médicas com intuito exclusivamente monetário, atraindo candidatos pouco qualificados.

E por aí vai. A conclusão deste relatório foi de que o número de escolas de medicina nos EUA deveria ser drasticamente reduzido, o que realmente aconteceu (mulheres e negros, que tinham escolas separadas,  saíram perdendo de cara), e também estipulou critérios de admissão e de currículo para as escolas de medicina.

O outro relatório, sobre ciência e cientistas, foi publicado logo após a Segunda Guerra (http://www.nsf.gov/about/history/vbush1945.htm). Este relatório recomendou que o governo estabelecesse uma fundação para distribuir fundos para a pesquisa. Esta Fundação (que tornou-se o NIH e outras agências) originalmente não empregaria nenhum cientista, mas distribuiria o dinheiro para outras entidades como Universidades, que seriam responsáveis pela contratação dos cientistas. Interessante que entre as recomendações estava a de que os fundos fossem estáveis, e esta foi a única recomendação não seguida… Outra coisa interessante é uma advertência de que, enquanto o relatório nota o déficit de cientistas (lembrem-se, isto em 1945), o relatório tambem nota 1) que o estudo científico não deve ser favorecido em prejuízo das chamadas humanidades e 2) que as bolsas não deveriam atrair um número maior de estudantes do que o projeto científico do país poderia absorver…

Enfim, os dois relatórios tornaram-se base das políticas do governo americano, com resultados distintos. Nos EUA, o numero de médicos é controlado, resultando em uma oferta de médicos restrita. Pode não ser a única razão dos altos salários médicos, mas li que os médicos que estudam em escolas americanas tem vaga praticamente garantida na residência, e que praticamente todos os médicos encontram emprego após a residência (sendo que o número de residentes também inclui um número grande de estrangeiros).  Assim, o número de médicos formados é controlado em relação ao número de vagas oferecidas.

Para os cientistas, o número de formandos não corresponde a um número de vagas disponíveis, uma vez que os fundos de pesquisa (nas mãos do governo) não estão diretamente ligados à vagas permanentes (nas mãos das universidades). Mas o número de cientistas passou a ser dependente de uma maneira perversa do dinheiro disponível para a pesquisa. Após uma expansão do número de professores por várias décadas, este número se estagnou. Mas estes professores formaram um certo número de alunos que por sua vez estão formando um número ainda maior de alunos, necessários para a condução da pesquisa. Assim, verbas de pesquisa são usadas para gerar vagas temporárias e mal-pagas (afinal, é “treinamento”), e estes estudantes formam-se sem qualquer relação à vagas permanentes após a graduação. Mas esta mão-de-obra é essential para a execução da pesquisa e obtenção de mais dinheiro pelo chefe do grupo, que torna a contratar mais ‘trainees”. Este ciclo vicioso forma então um vasto número de cientistas sem conexão com o mercado de trabalho. E se as universidades aumentam as vagas de professores, o aumento de verbas para pesquisa tem um efeito paradoxal de resultar em uma maior dificuldade para se obter verbas, com o aumento de pessoas competindo.

Note-se também outra diferença em relação à imigração: médicos estrangeiros tem que passar por exames e mais exames para poderem trabalhar nos EUA, mas é muito mais fácil conseguir ‘trabalho’ como PhD nos EUA, na maioria das vezes, pós-doc mal pagos, mas que são a verdadeira força dos labs aqui. Inclusive muitos médicos estrangeiros estão aqui trabalhando como pós-docs.

A razão da discrepância entre a carreira de um médico e um cientista seria simples: oferta e procura. O numero de médicos é controlado, com a valorização dos médicos formados. O de cientistas é abundante, com a desvalorização destes profissionais.

Num outro blog da Beryl ela vai além e discute que este imbalanço estaria relacionado à dificuldade de retenção de mulheres nas universidade daqui: como a oferta de pessoas querendo seguir a carreira acadêmica é muito grande, as universidades não tem muito incentivo em promover um ambiente mais “family-friendly”, facilitando a vida das mulheres com filhos pequenos. Afinal, se a profa. Maria da Silva não está feliz, tem outros 100 candidatos lá fora, altamente qualificados, prontos para tomar o lugar dela. Em contraste, se a Dra. Maria da Silva não está feliz na sua clínica, não tem 100 candidatos lá fora, e é bom a clínica arrumar um jeito de mantê-la porque senão vai ser difícil atender todos os pacientes…  E ela cita como a medicina tem se adaptado com muito mais eficiência à entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, mas as universidades não lidam bem com as mulheres que talvez interrompem ou reduzem o trabalho por um tempo. As universidades ainda trabalham com a noção de que todo mundo tem uma esposa em casa, incluindo as mulheres…

Na minha opinão, esta desconexão entre treinamento de cientistas e o número de vagas está também relacionada aos problemas em relação à reprodução dos estudos e até mesmo de falsificação de resultados – o número de pessoas trabalhando e competindo por um número pequeno de postos permanentes, e a pressão por resultados, é simplesmente muito grande.

Estes cenários se aplicam aos EUA, e confesso que estou defasada em relação ao que se passa no Brasil atualmente… mas acho que seria interessante se analisar o que aconteceu aqui, para não acabar se repetindo os mesmos erros.

4 comentários:

  1. A qualidade da ciência nos EUA vem a cada dia piorando. O financiamento está precário e a abundância de estrangeiros (china) que são aceitos por serem mão de obra "free", pois estes possuem bolsa de estudos, tem feito com que a concorrência seja desonesta. Como você bom falou, se reclamar tem 100 querendo sua vaga. Muitos bons cientistas estão migrando para indústria, enquanto a academia vem se "prostituindo". A primeira qualificação para um candidato é: eu tenho fellowship!

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  2. Nos países em desenvolvimento, no intuito de perseguir a "inovação" como motor para o desenvolvimento, estão sendo criados programas de PhD, muitas vezes sem preenchimento de requisitos mínimos de qualidade. Certamente, no futuro essa situação irá se reproduzir no mundo todo. A solução é aprender dos erros dos outros países, e formular políticas que sacrifiquem a urgência em prol da qualidade.

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  3. Concordo com o Fredy, percebo como estudante que após o Doutorado temos poucas opções (Pos-doc, Concursos ou aulas em faculdades particulares). Veja que por aqui a opção indústria praticamente não existe. Desse modo quase todos nós tentamos o Pós-doc, fora ou aqui mesmo, mas não temos a menor ideia de nosso destino após essa etapa. Gostaria que outros doutorandos dessem sua opinião será que faltam opções ou nossa formação está sendo feita de maneira incorreta?

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  4. E no caso dos médicos que optam por seguir também a carreira científica? Como é a situação deles? Essa "união" é positiva ou a falta de tempo acaba tornando-a inviável? Sou estudante de medicina e cogito a possibilidade de tornar-me também um pesquisador no futuro.

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