sexta-feira, 2 de março de 2012

Imunologia no tempo dos Beatles: a descoberta do processamento e apresentação de antígenos

Depois das primeiras descobertas de Metchnikov, a Imunologia Celular foi esquecida e sòmente renasceu na era dos Beatles, nos anos 60. Alguns marcos desta nova ciência foram: a descoberta da importância do timo (Miller, JF. The thymus and the development of immunologic responsiveness. Science 144; 1544-1551, 1964); e a descoberta do isoantígeno theta (CD90) como marcador de linfócitos T (Raff, MC. Theta isoantigen as a marker of thymus-derived lymphocytes in mice. Nature 224; 378-379, 1969).
O nascimento desta nova disciplina não foi tranquilo; seus entusiastas tiveram que lutar contra preconceitos e dogmas estabelecidos pela imunologia dominante até então, que era influenciada pela microbiologia, pela imunoquímica e pela imunopatologia. Como seria a vida daqueles pioneiros da imunologia celular ? Trabalharam quase no escuro, e com a informação obtida, acertaram muito mais do que erraram, para que a imunologia chegasse aonde está hoje. A imunologia celular pioneira parecia com os Beatles: surpreendendo, quebrando barreiras, e parafraseando George Harrison: “salvando a imunologia da chatice”.
Nos anos 60, o Scripps Research Institute, de San Diego, uma das mais conceituadas instituições de pesquisa em imunologia dos USA, foi fundado e dirigido por Frank Dixon, um imunopatologista já falecido, famoso por seus estudos sobre glomerulonefrites provocadas por complexos antígeno-anticorpo. Frank Dixon reuniu na clínica Scripps um grupo de excelentes pesquisadores que deram grandes contribuições à imunopatologia. Isto se deu porque foram capazes de quantificar o efeito lesivo dos anticorpos em tecidos animais, e de localizar os anticorpos por meio de técnicas pioneiras de marcação radioativa.
Eu evito confundir admiração científica com admiração pessoal, ou com as posições políticas de pesquisadores, pois as decepções são frequentes. Mas este é um caso representativo do pioneirismo dos anos 60. É a história do que aconteceu com o imunologista Emil Unanue que, nos anos 60 viajou para a Inglaterra, e lá descobriu que macrófagos processam e apresentam antígenos para linfócitos. Num relato recente, Emil Unanue descreve os dois momentos distintos que viveu na Clínica Scripps (Unanue, ER. Starting in immunology by way of immunopathology. Annu. Rev. Pathol. 6; 1-18, 2011). Unanue foi recrutado para este grupo e foi acolhido por Frank Dixon, que era um líder de posições firmes e decidido. Neste início, Unanue deu várias contribuições importantes ao tema de inflamação mediada por anticorpos e o papel de neutrófilos neste processo.          
Em 1966, Unanue foi para o NIMR, Mill Hill, Londres, para ampliar a sua formação. Lá, interagindo com os imunologistas ingleses, ele mudou a sua forma de pensar sobre imunologia. Trabalhando junto com Brigitte Askonas, ele demonstrou que a imunogenicidade de proteínas podia ser aumentada se estas estivessem associadas a macrófagos vivos (Unanue ER, Askonas BA. The imune response of mice to antigen in macrophages. Immunology 15; 287-296, 1968). Este trabalho é um clássico, o primeiro que sugere a existência de processamento e apresentação de antígenos para linfócitos. Retornando à Scripps, Unanue se associou com Jean-Charles Cerottini (um pesquisador visitante europeu que depois desenvolveu o método da marcação pelo Cromo, possibilitando estudar a citotoxicidade). Utilizando marcação radioativa, eles encontraram uma fração do antígeno proteico que ficava associada a macrófagos por longos períodos (J Exp Med 151; 711-725, 1970). Na Scripps, a pesquisa imunológica continuava centralizada nos anticorpos, no complemento e nos neutrófilos, e aqueles resultados com macrófagos eram vistos com incredulidade. O resultado era robusto – oferecer proteínas a macrófagos sempre as tornava melhores antígenos – mas ia contra o dogma de que macrófagos, através de lisossomas, catabolizavam e destruíam as proteinas. Por isso, o esforço de Unanue e Cerottini era o de encontrar no macrófago um compartimento aonde o antígeno ficasse protegido da destruição. As ferramentas bioquímicas e de biologia celular eram precárias, mas os traçadores radioativos confirmavam a existência de um pequeno pool estável de antígeno.

Quando indagado sobre imunidade celular, Frank Dixon era muito reticente e crítico. Comparando com os seus anticorpos nefrotóxicos, dizia que não se pode acreditar naquilo que não pode ser quantificado. Frank Dixon não acreditou e não aceitou as idéias de Unanue, e a relação entre eles se tornou quase hostil, a ponto de Unanue decidir ir embora. Naquele momento, Unanue conheceu Baruj Benacerraf, e lhe contou sobre suas dificuldades. Ficaram amigos aparentemente porque podiam relembrar juntos a língua espanhola. Unanue é cubano e Benacerraf.já falecido, era venezuelano. Benacerraf acreditava na importância de anticorpos citofílicos, uma forma de fundir a velha e a nova imunologias. Os resultados de Unanue poderiam ajudar nesta hipótese, que no entanto, não vingou. Pouco depois, Benacerraf convidou Unanue para ir com ele para a Faculdade de Medicina de Harvard. O conceito de apresentação de antígenos se espalhou como um vírus. Foi neste ambiente que, nos anos que se seguiram, Emil Unanue caracterizou o processamento de antígenos e as interações entre peptídeos e moléculas de MHC (Unanue, ER. From antigen processing to peptide-MHC binding. Nat. Immunol. 7; 1277-1279, 2006).
As interações sociais afetam a evolução da ciência. A vaidade, em particular, é uma característica digna de nota pela sua frequência. Nenhuma disputa científica se passa apenas ao nível das idéias. Deixa ressentimentos, faz inimigos, azeda sonhos. Por outro lado, as disputas e rupturas sociais na ciência têm um papel de fomento, pois separam os rivais, contribuindo para diversificar as idéias científicas e nuclear novos grupos de pesquisa.    

Post de George A. DosReis
IBCCF-UFRJ

4 comentários:

  1. George, gostei muito do seu post...

    Gostei do assunto, da leveza do texto, e gostei da lembranca de duas figuras historicas (Unanue e Harrison). Eu pensei que os dois em comum so tinham o bigode (nessa foto)...mas agora, depois de ler seu texto, me dei conta que eles tiveram papeis semelhantes...

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  2. Obrigado Sergio..gosto da comparação entre as duas revoluções: na musica e na imunologia... naquele periodo, recem-chegado na Universidade e no assunto, vivi as duas transformações mais ou menos ao mesmo tempo.

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  3. em tempo: .. Alem disso, eu conheci o Unanue e o Benacerraf pessoalmente, numa época muito legal da minha vida.. :)
    George

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  4. que experiencia incrivel, george... curti muito o post...

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