sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Leucócito rolando montanha abaixo



O sujeito que inventou meeting em montanha não tem mãe. Primeiro que pra quem não gosta de esquiar (feito eu), é um saco. Depois a altitude. Como é que se pode botar um individuo dentro de uma sala sem oxigênio e esperar que o cara faça sentido das coisas? Ora, se pra mim já é dificil entender esse nosso húngaro no nivel do mar, imagine a quase 4000 metros de altitude.

Essa é a segunda vez que venho a Breckenridge, no Colorado.  Na primeira vez quase morro de doença da altura, que credito em parte a uma bela carraspana no dia da abertura do meeting. Fiquei tão mal que acabei no hospital tomando oxigênio. Dei meu talk e fui embora logo depois. Jurei que nunca mais.....

Só que me convidaram de novo pra organizar, e me disseram que com Diamox tudo se resolve. A carne é fraca. Topei. Topei, mas decidi que cachaça nem em vitrine. O que, convenhamos, é uma tragédia, uma vez que pra aproveitar o meeting, a cachaça sempre ajuda.  Isso porque o povo não mostra nada que não tenha sido publicado, ou que nao esteja em vias imediatas de publicação. Pra aprender algo novo, ou pra discutir o que se viu, só no bar... Entre uma conversa e outra, as novidades escapam de fininho.

Esse meeting foi sobre quimiocinas e tráfico de leucócitos e aconteceu agora no começo de 2012. Foi co-organizado por Bill Agace (Suecia), por Sirpa Jalkanen (Finlandia) e pelo limoeirense aqui. Antes eram meetings separados, mas o pessoal de Keystone resolveu juntar as tribos, o que faz sentido. Os talks inaugurais foram de Eugene Butcher e de Phil Murphy, representando cada uma das tribos. O talk de Phil foi sobre o uso terapeutico de bloqueadores de CXCR4 e o de Gene foi um talk partido em dois. No primeiro ele mostrou estudos sobre a diferenciação de células plasmocitoides no intestino e no segundo mostrou uma quantidade cavalar de resultados com a tecnologia do CyTOF desenvolvida por Garry Nolan em Stanford. Bom, se voces já estão confusos em chamar uma célula dendritica de maria cavalcanti de albuquerque romão silveira preparem-se. Vem aí o mundo dos 100 marcadores fenotípicos.

O que acontece depois que o leucócito adere a parede do vaso sanguineo. Ronen Alon do Weizman Institute mostrou que o tráfico de células T efetoras é diferente das células naive ou de memória. As últimas dependem de quimiocinas para aderirem, as efetoras dependem de quimiocinas para atravessar o endotelio. Ele usou microscopia eletronica de varredura pra mostrar que essas células ao penetrarem entre as células endoteliais emitem o que ele chama de millipeds que fazem conexão com focal contacts intracelulares onde existem pockets de CCL2. Ou seja, esses milipeds, penetram a membrana das células endoteliais... Ele postula que as quimiocinas são importantes pra transmigração, especialmente os ligantes para CCR1, CCR22 e CCR5. O processo é extremamente rapido, durando cerca de 90-120 ms. No dia seguinte escutamos Sussan Nourshargh de Londres falar sobre migração de neutrófilos. Ela apresentou uns filminhos espetaculares que mostram que os neutrófilos usam a via paracelular em 90% dos casos e transcelular no resto. O acontece com as células depois da adesão foi tambem bastante discutido nesse meeting. Sussan mostrou que depois que os neutrófilos passam pelo endotelio, eles rastejam pelos pericytes antes de cruzar a membrana basal. E que curiosamente os neutrófilos as vezes voltam pro lumen do vaso. Esse processo é raro, mas esta aumentado significamente em condições de reperfusão. Sera que isso tem alguma função?

Paul Kubes mostrou umas imagens espetaculares de inflamação no fígado. Em particular uma serie de estudos mostrando interações de neutrofilos e plaquetas nos sinusoides. Mostrou que hyaluran é importante para adesão de neutrófilos nos sinusoides. Mostrou tambem modelos de inflamação no contexto de infecção bacteriana e em modelo de inflamação esteril (calor).

Contribuições técnicas. As duas novas tecnologias que se destacaram foram as de CyTOF, descrita no talk de Gene Butcher e a de  histocitometria, introduzida pelo pessoal do lab de Ron Germain (NIH). A tecnica consiste em scanear laminas que tenham sido incubadas com ate onze distintos anticorpos. Isso vai permitir uma melhor visualização de populações específicas em linfonodos, baço, medula, etc.

Burkhard Ludewig (Suiça) falou sobre uma serie de bichos novos que criou expressando Cre em células fibroblasticas reticulares. Esses reagentes vão ser muito importantes para estudar a biologia de células do estroma, por permitir ablacao especifica via Cre de gens no estroma do baço, linfonodo, etc.

 Migracao de monócitos/DC: Nessa sessão se discutiram as últimas novidades em migração de monócitos e subsets de dendritic cells. Aqui falou minha colega Miriam Merad (Mount Sinai, New York), que estuda a ontogenia das células dendriticas e tem sido responsável por avanços significativos nessa area. Por exemplo, o seu lab mostrou que a microglia se origina de células provenientes do yolk sac, numa fase muito precoce do desenvolvimento e não de monócitos circulantes. Ela tambem apresentou resultados sobre a ontogenia das células de Langerhans e de populacoes dendriticas no intestino.

Na mesma sessão Steffen Jung do Weizman Institute (Israel), falou sobre fractalkine (CX3CL1). Mais especificamente sobre a função da fractalkine de membrana versus a forma solúvel. A fractalkine é uma das duas quimiocinas que existe como uma proteina de membrana (a outra é CXCL16). A forma de membrana pode ser processada por ADAM 10 e 17, e dá origem uma forma solúvel. Steffen criou varios modelos geneticos para estudar essa proteína e mostrou que a forma solúvel é essencial para resgatar um fenotipo que tinhamos visto antes em fractaline knockout mice criados pelo meu grupo. Um grupo de macrófagos do intestino emitem umas extensões citoplasmaticas que se interpolam entre as células epiteliais (Trans-epithelial dendrites, ou TEDs) e scan o lumen do intestino. Tais extensões desaparecem nos knockouts de fractalkine, mas ao cruzar os knockouts com animais expressando a forma solúvel da fractalkine (via BAC transgenesis), essas extensões reaparecem (ele usa CX3CR1 GFP knockins para monitorar os macrófagos). A forma solúvel nao consegue corrigir um outro defeito associado com a falta de fractalkine e seu receptor, CX3CR1, que é a apoptose de monócitos. Nesse caso só a forma transmembrana recupera o fenotipo.

Guy Shankar (tambem do Weizman Inst, Israel) foi mais além. Ele mostrou que TEDS não são exclusivos dos macrófagos. Mostrou que células dendriticas na lamina propria podem ser recrutadas para o epitélio, e que tambem podem emitir TEDS. Isso tem implicações em patogênese. Os macrófagos que são CX3CR1+, estão junto do epitélio e dai não saem, dali ninguem lhes tira. As DC, migram pro linfonodo mesentérico. Então nossa amiga salmonella, sai do lumen direto pro linfonodo. Talk muito claro, imagens fantasticas, diagramas muito bem feitos.

Gwen Randolph falou sobre o papel da gordura perinodal em migração de células dendriticas e macrofagos. O talk foi um pouco prejudicado por ter sido dado a 450km/h. 

Linfáticos, a fronteira. Varios talks sobre a biologia dos linfaticos, que é nossa caixa preta. Um muito bom de Reinhold Forster, que feito um japones, canulou um linfatico na perna de camundongo….Para estudar como as células dendriticas e as T cells se movimentam uma vez que tenham chegado ao linfonodo. As células dendriticas e as células T que vem da periferia (ao inves do sangue pelas HEV) percorrem caminhos distinto uma vez no linfonodo.

Michael Sixt (Austria) deu um dos melhores talks to meeting. Apresentou resultados sobre a migração de DC em direção aos linfáticos. O processo  é dependente da expressão  CCL21 nos vasos linfáticos e de CCR7 nas DC. Até aí nada de novo. O que ele mostrou de novo foi a presença de gradientes fixos de CCL21 que decaem exponencialmente ao redor dos vasos. Os gradientes não são solúveis, mas imobilizados em heparan sulfate (haptotaxis). Uma vez que o heparan sulfate é removido, o gradiente achata e a migração  das DC é abolida. Esse estudo é importantissimo porque até hoje não se tinha demonstrado a existência de gradientes em vivo para quimiocinas.

De dia é Maria de noite é João. Paul Frenette (Albert Einstein, New York) falou sobre ritmos circadianos na migracao de precursores hematopoieticos para a medula óssea e pros tecidos. Esses resultados tem implicações para transplante de medula. Tambem abre novas perspectivas para entender o efeito do jetlag no sistema immune e para oferecer explicações sobre porque nos modelos de choque séptico os animais morrem mais ao serem induzidos de noite do que de dia.

O melhor talk do meeting. Uli von Andrian (Harvard), deu um talk magistral sobre o papel das NK cells na resposta adaptativa. Perai, NK cell? Sim, prezados ouvintes, ela mesma… Esse trabalho deriva de resultados do grupo dele desde 2006 mostrando que Rag-deficient mice tem contact hypersensitivity. Animais Rag gamma C ou Scid gamma C, que não tem NK, não tem resposta. A resposta é restaurada atraves de adoção de células NK. Parte do trabalho na recall response saiu na Nat Imm em 2010. Uli acha que o priming e’ feito no linfonodo, as celulas migram pro fígado (ai as NK são Thy1+Mac-1+CXCR6+) e daí pro pulmão, onde segundo ele, se transformam em memory NK. Immunizou a seguir rag ko com  com antígenos virais e mostrou proteção contra um desafio letal. E a seguir clonou as celulas NK, e fez transferência de núcleo, gerando animais completamente derivados dessas células (isso é que eu chamo uma tour de force, trabalho em colaboração com Hidde Ploegh). Nesse momento procura saber se há um substrato genético para memória, que envolva alterações no nivel de DNA.

Algumas pessoas questionaram se essa titica de celulas NK seriam importantes na resposta imune global, outros acharam que os experimentos de clonagem não oferecem respostas definitivas uma vez que algumas alterações epigenéticas não são totalmente apagadas pela clonagem... Normal, tem sempre a descrença, irmã da inveja. Assistindo o talk dele eu tive a impressão de que ele ja sabe mais do que falou...E acho que se ele provar que tem modificacao no DNA (que a resposta não é epigenetica) ele terá na mão a evidência que não só T and B cells can do it…e que as celulas NK não são tão inatas assim…E talvez exista uma grande descoberta aí na esquina....

Em suma, o meeting foi muito bom. Imaging e genética, aliados a novas técnicas de fenotipagem, estão nos proporcionando um conhecimento mais detalhado dos processos imunológicos. Precisamos avancar mais em relacao a biologia do sistema linfatico, entender melhor o processo de formacão de gradientes de quimiocina, estudar padrão de migração de populacoes como eosinófilos, basofilos, LTi-like cells, etc. Entender melhor os mecanismos de comunicacao entre o sistema nervoso e o sistema imune, em particular o controle de mobilizacao de celulas especificas da medula ossea... Temos muita estrada pela frente.  

Agora, teria sido muito melhor se esse meeting tivesse sido em Angra ou em Porto de Galinhas. A gente sabe porque.

10 comentários:

  1. Isso sim é um resumo de meeting, parabens Prof. Lira. Só um cometário. Quando o pessoal começar a usar isso aqui

    http://www.dvssciences.com/cytof-instrument.html

    Aí sim vamos ficar loucos...

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  2. Texto excelente!!!!!!! Bom eu acredito que o fato dos neutrófilos voltarem para o lumen certamente deve ter uma função, nada na Imunologia acontece por acaso… E sobre as NK eu acredito que essa célula realmente não seja tão inata assim… Aprendi muito com o texto e fiquei impressionada com a rapidez dos acontecimentos ‘’ 90-120 ms ‘’…..

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    1. Tbm adorei o texto e as informações!

      Será que a volta de alguns neutrófilos para o vaso teria finalidade de dar o link com a imunidade adaptativa? São bem interessantes os papers que estão começando a mostrar o papel dos neutrófilos além da clássica imunidade inata...
      Acho que a lição até agora é para nos darmos conta que a separação dos sistemas, respostas e células só existe por uma questão didática mesmo.

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  3. Sim acho que os neutrófilos podem voltar pra dar o link na imunidade adaptativa ou talvez chamar outras células ( mais neutrófilos, macrófagos ou os linfócitos), até porque o neutrófilo morre muito cedo….

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  4. Muito bom Sérgio. Não vi o trabalho dos neutrófilos não, mas como ela identificou os Neuts? Será que não é seriam monócitos Gr1+?
    Abraços

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  5. Pessoal, muito obrigado pelos comentarios. Muito interessante essa estoria dos neutrofilos, nao e? Foi publicada o ano passado, deem uma olhada

    Nat Immunol. 2011 Jun 26;12(8):761-9. doi: 10.1038/ni.2062.
    The junctional adhesion molecule JAM-C regulates polarized transendothelial migration of neutrophils in vivo.
    Woodfin A, Voisin MB, Beyrau M, Colom B, Caille D, Diapouli FM, Nash GB, Chavakis T, Albelda SM, Rainger GE, Meda P, Imhof BA, Nourshargh S.
    Source
    William Harvey Research Institute, Barts and The London School of Medicine and Dentistry, Queen Mary University of London, Charterhouse Square, London, UK.
    Abstract
    The migration of neutrophils into inflamed tissues is a fundamental component of innate immunity. A decisive step in this process is the polarized migration of blood neutrophils through endothelial cells (ECs) lining the venular lumen (transendothelial migration (TEM)) in a luminal-to-abluminal direction. By real-time confocal imaging, we found that neutrophils had disrupted polarized TEM ('hesitant' and 'reverse') in vivo. We noted these events in inflammation after ischemia-reperfusion injury, characterized by lower expression of junctional adhesion molecule C (JAM-C) at EC junctions, and they were enhanced by blockade or genetic deletion of JAM-C in ECs. Our results identify JAM-C as a key regulator of polarized neutrophil TEM in vivo and suggest that reverse TEM of neutrophils can contribute to the dissemination of systemic inflammation.

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  6. Belo texto Dr Lira, Obrigado.

    Sobre CyTOF, as possibilidades minimas sao 2^x (dois elevado a x), onde x é o numero de marcações. Alguem sabe quanto é (2^100)? Imagino que deva existir duas dificuldades: 1- a tecnica dispensa compensação, mas a possibilidade de inespecificidade existe. Padronizar 100 anticorpos diferentes... 2- Serão necessarias ferramentas de analise automatizadas. Se for analizar isso "no braço", por exemplo em FlowJo, vai ser complicado.


    The junctional adhesion molecule JAM-C regulates polarized transendothelial migration of neutrophils in vivo. É um belo trabalho, tem confocais maravilhosos mostrando a chamada migração reversa de neutrófilos. Mas ainda é complicado identificar neutrófilos que fizeram esse caminho (eles usam Icam-1) e o que essas celulas são capazes de fazer posteriormente.

    Para quem se interessar, tem um modelo interessante na capa do Journal of Leukocyte Biology de Maio/2011, onde é feita marcação (por fotoativação) de neutrofilos no tecido para localiza-los posteriormente. Infelizmente não é um modelo murino, é zebrafish:

    Yoo, S.K. & Huttenlocher, A.
    Spatiotemporal photolabeling of neutrophil trafficking
    during inflammation in live zebrafish.
    J. Leukoc. Biol. 89, 661–667 (2011).

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  7. Oi Sérgio! Muito bom mesmo seu post! O que me chamou a atenção foi a parte que vc comenta sobre "as imagens espetaculares do Paul Kubes". Aquele modelo de "queimadura focal" no fígado e migração de neutrófilos foi o modelo que eu desenvolvi com ele quando estive em Calgary em meu pós-doc. Felizmente publicamos aqueles dados em 2010, e tivemos uma aceitação muito boa dos dados. Hoje, no Brasil, nós estamos buscando aplicar as vias elucidadas neste trabalho para o tratamento de doenças hepáticas. Por incrível que pareça, em alguns dos nossos vídeos, eventuais neutrófilos emigrados pareciam "retornar" para o sinusóide logo ao lado. Isso parece mais plausível no fígado, pois ao contrário do que eu pensava anteriormente, este é um órgão basicamente "vascular". Isso é, entre 2 sinusóides há poucas "fileiras" de hepatócitos. Então, quando um neutrófilo emigra para o parênquima, ele poderia inadvertidamente "cair" dentro de outro sinusóide. Eu não sei se isso é fato, pois não fomos atrás disso. Hoje, lendo seu post, me lembrei dessas imagens e revi meus vídeos. Isso parece ocorrer com uma freqüência considerável. Um dia desses ainda acho um aluno animado a fazer microscopia intravital de fígado por horas e confirmar isso... Parabéns pelo post!
    Ref. citada: http://www.sciencemag.org/content/330/6002/362.short

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  8. Opa Gustavo, parabenss pelo trabaljo. Realmente muito bonito

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