quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O desafio


Olhe pra foto. O que voce esta vendo é uma imunofluorescencia para queratina em pulmão de camundongo feita por Monique Beltrão, aqui no meu laboratório. A queratina é um marcador de células epiteliais que estão presentes nos bronquios e traquéia. Os bronquios são as estruturas redondas e ocas na foto. Preste atenção que junto de um deles há um grupo compacto de células positivas. Este grupo de celulas positivas é um cancer em desenvolvimento.

Esse camundongo expressa uma forma mutante de um gen que se chama BRAF, que codifica uma quinase. Essa mutacao (BRAFV600E) faz com essa quinase fique super ativa. Embora não seja numericamente importante em termos da epidemiologia de cancer de pulmão, essa mutacao é importante, e muito, em melanoma e em cancer de intestino. Uma droga capaz de interferir com a função do BRAFV600E foi aprovada recentemente. Tem causado um frenesi semelhante ao da descoberta de Gleevac. Lembro que na época que estava na indústria farmaceutica o povo virava o nariz quando se falava em terapia direcionada a inibir quinases. Hoje existem mil companhias trabalhando nisso. Como diria o velho Karl Marx, o capital é cruel, mas não é burro.

O problema é que pra cada frenesi, tem um defrenesi. No caso, resistencia ao medicamento emergindo ao longo do tempo em alguns pacientes. Muitos imunologistas que conheço acham que a melhor maneira de combater o cancer é recrutar o sistema imune, que aparentemente é desarmado durante a doença. Gente como Jim Allison, por exemplo. Allison tem sido um pioneiro em desenvolver estrategias para para eliminar células cancerosas. Drogas que atuem no sistema immune, não nos oncogens. E tem sido o principal evangelista dessa linha. Ele batalhou muito para trazer o anti-CTLA4 para clinica (Ipilimumab, BMS). E, claro, está muito animado com os resultados. Os resultados publicados recentemente em melanoma são animadores, embora nao avancem a sobrevida mais que quarto meses quando comparados com outros tratamentos. Ele esteve aqui no Sinai e conversamos. Ele acha que os resultados podem ser ainda melhores. Talvez combinando droga anti-BRAF (Vemurafenib, Roche) ou radiação, seguidos de anti-CTLA4. Droga ou radiação provocariam a morte de muitas células cancerosas que seriam processadas imunologicamente. Nesse contexto, a energizacao provocada pela inibicao da inibicao (via anti-CTLA4) poderia produzir uma superresposta imunologica contra as células cancerígenas. Os modelos animais estao aí e podem servir pra testar as hipóteses.

Eu estou tambem interessado em entender melhor essa conexão de cancer com imunologia. Acho fascinante. Há um tempo atrás li um livro que descreve como esse campo de estudo se desenvolveu, desde os primeiros experimentos de Coley aqui em Nova Iorque. Ele mostrou que inflamação tinha um efeito curativo em cancer. Isso no século 19. O livro se chama A commotion in the blood.

E aqui uma historia que me levou de volta ao livro. Meu amigo Ney Cavalcanti teve um cancer de pulmão. Cancer de pulmão é a causa mais frequente de morte por cancer no mundo. Mata mais gente por ano que o total combinado de cancer de seio, prostata e intestino. Ney sobreviveu. O cirurgião que o operou aqui no Sloan-Kettering, por ironia do destino, morreu de cancer de pulmão. Ney me ensinou medicina. Lembro dele dizendo: Sergio, voce gosta de ler o New England, isso é legal, mas pra ser médico voce precisa ir palpar uns fígados…Esse mesmo Ney me disse que está convencido que o que o salvou foi uma infecção que teve no pulmão apos a cirurgia. O velho Coley. Só que ninguém sabe direito como ele sobreviveu, porque não existiu um grupo experimental tipo Ney com cancer sem infecção. Ninguém sabe como algumas pessoas escapam. Gens? Resposta imune eficiente?

Outra é essa aqui: o cancer já levou amigos e parentes queridos. Todos nós temos exemplos próximos. No dia que comecei escrevendo este post, levou meu amigo Chico Mendonça, que lutava com um cancer de pulmão. Outras pessoas proximas lutam ou lutaram contra cancer de seio, cancer de tireoide, cancer de próstata, melanoma, cancer de pancreas, glioblastoma. Esses tres últimos, os mais difíceis. Essas pessoas queridas são vitimas da nossa ignorancia. Da nossa ignorancia de como evolui o cancer, de como desarma o nosso sistema imune, e de como se espalha. A tristeza de ver nossos amigos sofrendo, de não poder escutar seu riso, de nao poder sentir o abraço de volta (como tão bem me disse Veronica), é um sentimento terrível.

Portanto, esse é um desafio para nossa geração. Não acredito que nós imunologistas vamos curar o cancer nos próximos 10 anos, mas acredito que possamos desenvolver medicamentos que deem melhor qualidade de vida as pessoas. E acredito que nada importante acontecerá se não investirmos na ciencia básica (sou um grande fã da imunoterapia, mas acho que sem pesquisa básica ela não vai pra frente). Como vários outros imunologistas, estou trabalhando em cancer e inflamação. Trabalhei por anos na identificaçao de moleculas virais que simulam moleculas do sistema imune e mostrei que elas podem atuar como oncogens. Tenho tambem trabalhado com quimiocinas e cancer e, além desse estudo acima em pulmao, tenho interesse em entender como inflamação e microbioma afetam o desenvolvimento de cancer no sistema digestivo. Acabo de ganhar uma grant para estudar esse assunto e preciso de gente. Se voce estiver interessado em trabalhar nessa área por favor entre em contato comigo.

Até logo.
Yang TY, Chen SC, Leach MW, Manfra D, Homey B, Wiekowski M, Sullivan L, Jenh CH, Narula SK, Chensue SW, Lira SA. Transgenic expression of the chemokine receptor encoded by human herpesvirus 8 induces an angioproliferative disease resembling Kaposi's sarcoma. J Exp Med 2000;191:445-454.
Holst PJ, Rosenkilde MM, Manfra D, Chen SC, Wiekowski MT, Holst B, Cifire F, Lipp M, Schwartz TW, Lira SA. Tumorigenesis induced by the HHV8-encoded chemokine receptor requires ligand modulation of high constitutive activity. J Clin Invest 2001;108:1789-1796.
Grisotto MG, Garin A, Martin AP, Jensen KK, Chan P, Sealfon SC, Lira SA. The human herpesvirus 8 chemokine receptor vGPCR triggers autonomous proliferation of endothelial cells. J Clin Invest 2006;116:1264-1273.
Bongers G, Maussang D, Muniz LR, Noriega VM, Fraile-Ramos A, Barker N, Marchesi F, Thirunarayanan N, Vischer HF, Qin L, Mayer L, Harpaz N, Leurs R, Furtado GC, Clevers H, Tortorella D, Smit MJ, Lira SA. The cytomegalovirus-encoded chemokine receptor US28 promotes intestinal neoplasia in transgenic mice. J Clin Invest 2010;120:3969-3978.

4 comentários:

  1. oi Sérgio, muito bacana você divulgar os resultados e o trabalho do seu grupo, também sua preocupação com o assunto e abrir a oportunidade de trabalho para os interessados na área...que o sucesso de sua equipe continue...Abs

    ResponderExcluir
  2. essa Monique Beltrão é o orgulho do Brasil! =)

    ResponderExcluir
  3. Alvaro, muito obrigado. Anonimo, ficou bonito o trabalho dela. Concordo com voce.

    ResponderExcluir
  4. Sérgio, é muito bonito ver um colega falando com tanta sensibilidade sobre uma doença tão cruel, que, como vc disse, nos aparta de tantos amigos, parentes e, em geral, depois de muito sofrimento. Eu perdi meu pai há pouco - câncer de pulmão - e, além da saudade, fica a lembrança do sofrimento que presenciei. Espero que você tenha muito, muito sucesso em seus estudos. Abraço

    ResponderExcluir