terça-feira, 26 de abril de 2011

O Cardiologista e a Imunologia


Post de Luis Claudio Correia
No início do curso de medicina tive um primeiro contato com a imunologia, durante a disciplina que levava esse mesmo nome, coordenadas pelos Barrais (Manoel e Aldina). Achei interessante aquela história de várias células diferentes, interagindo entre si, cada uma com sua função. Parecia-me como funcionam as civilizações humanas, tanto do ponto de vista da cooperação, como dos conflitos.
Aquela sensação ficou por algum tempo apenas como uma boa impressão, sem grande aplicação prática. Enveredei pela clínica e me tornei cardiologista. Na cardiologia predominava uma explicação simplista para a doença aterosclerótica, ou seja, era o acúmulo do gordura na parede das artérias, provocado pelos altos níveis de colesterol plasmático e outros fatores de risco. 
Algum tempo passou e foi em meados dos anos 90 que a imunologia começou a se aproximar da cardiologia. Surgia a idéia do mecanismo inflamatório como mediador do acúmulo de gordura na parede dos vasos. Ou seja, é a presença de células inflamatórios da parede do vaso que possibilita o acúmulo de gordura na camada média das artérias. 
Em condições normais, o endotélio vascular é impermeável a leucócitos, impedindo a presença de células inflamatórias na parede das artérias. Dados experimentais indicam que células endoteliais de animais submetidos a dieta hiperlipídica passam a expressar receptores de superfície, que permitem a passagem de leucócitos para o interior do vaso.1 Ademais, animais geneticamente modificados para expressar receptores defeituosos se tornam protegidos contra aterosclerose.2 Estes dados sugerem uma relação de causalidade entre a penetração de células inflamatórias na parede dos vasos e desenvolvimento de aterosclerose. 
A expressão dos receptores de superfície (vascular cell adhesion molecule-1, VCAM-1, e intercellular adhesion molecule-1, ICAM-1) representa a ligação patogênica entre os fatores de risco e doença aterosclerótica. Fatores agressivos ao endotélio (hiperlipidemia, hiperglicemia, estresse de parede na hipertensão arterial, substâncias presentes no cigarro) diminuem sua produção de óxido nítrico, molécula que normalmente inibe a expressão dos receptores de superfície.3 Desta forma, é a disfunção endotelial promovida pelos fatores de risco que promove a penetração de células inflamatórias na parede vascular.4 Uma vez dentro da parede arterial, as células inflamatórias induzem a expressão de citocinas, dando início à cascata inflamatória responsável pela doença aterosclerótica.
Várias citocinas inibem a ação do óxido nítrico e aumentam ainda mais a expressão de moléculas de adesão, incrementando a penetração de monócitos e linfócitos na parede vascular. Monócitos se diferenciam em macrófagos com função de fagocitose de partículas de low density lipoprotein (LDL)-colesterol, provocando o acúmulo de lipídios na parede vascular.4 A IL-18 induz a expressão de TNF-α, que estimula a produção metaloproteinases por macrófagos da parede vascular.5 As metaloproteinases destroem o colágeno da capa fibrosa da placa aterosclerótica, tornando-a vulnerável para ruptura.4 Além disso, o TNF-α induz a produção de fator tecidual.6 A IL-18 estimula a produção de interferon-γ por linfócitos,7 cuja ação principal é inibir a produção de colágeno por células musculares lisas, enfraquecendo a capa fibrosa da placa.4 A IL-1 aumenta a expressão de fatores coagulantes.8 Paralelamente, a IL-7 é produzida por plaquetas ativadas,9 a qual induz a expressão de IL-8, que tem função quimiotática. Desta forma, percebe-se que a inflamação na parede do vaso resulta de uma intensa interação entre citocinas e células inflamatórias.
Desta forma, o cardiologista começa a pensar um pouco como imunologista. Marcadores inflamatórios passaram a ser aventados como preditores de risco cardiovascular. Embora o valor incremental da medida rotineira de marcadores inflamatórios na predição de risco seja questionável, a presença de associação independente entre risco cardiovascular e nível de inflamação subclínica reforçou a idéia da inflamação como um componente da fisiopatologia da aterosclerose. 
No entanto, ainda está por vir o maior benefício da interação imunologia/cardiologia. Este potencial benefício reside em terapias que bloqueiem o mecanismo inflamatório nas placas ateroscleróticas. Cardiologistas consideram que o uso de estatina é um tratamento antiinflamatório, pois este tratamento reduz marcadores inflamatórios como proteína C-reativa. Porém não sabemos até que ponto a redução da inflamação decorre de ação antiinflamatória direta ou se é simplesmente uma conseqüência da redução do colesterol na parede dos vasos. Além disso, estatina já está indicada como tratamento antilipidêmico, não representa exatamente um tratamento adicional, que vai reduzir ainda mais o risco cardiovascular.
O futuro pode estar em terapias que bloqueiem diretamente a inflamação na parede do vaso. Por exemplo, bloqueadores da expressão de receptores das células inflamatórias nas paredes dos vasos (VCAM-1, ICAM-1). Ou bloqueadores da ação do TNF-α ou interferon-γ. Uma vez isso desenvolvido, grandes ensaios clínicos deverão avaliar se estas intervenções serão capazes (não só de reduzir placas ateroscleróticas) de reduzir a incidência de desfecho importantes, como infarto, AVC ou morte. 
Caso isso ocorra, será grande o impacto da parceria cardiologia/imunologia e minha simpatia inicial por imunologia se confirmará como uma predição intuitiva da grande importância daqueles conceitos imunológicos básicos aprendidos no curso médico.
Quem sabe essa postagem desperte a curiosidade de imunologistas, fazendo surgir uma idéia que revolucione a prevenção e tratamento da doença aterosclerótica, maior causa de óbito no mundo.

Luis Claudio Correia (CV): Graduação em medicina pela Universidade Federal da Bahia (1992), residência médica no Hospital Universitário Professor Edgard Santos (1993-1994), research fellowship em cardiologia na Universidade de Johns Hopkins e National Institute of Aging - NIH (1995-1997), doutorado em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (2000-2003), pós-doutorado na Fundação Bahiana para o Desenvolvimento das Ciências, Professor Livre-Docente em Cardiologia pela UFBA (2010). Atualmente professor adjunto da Escola Bahiana de Medicina, incluindo atividade de professor permanente na Pós-graduação. Principal linha de pesquisa: Marcadores Inflamatórios em Síndromes Coronarianas Agudas.
Reference List
1. Li H, Cybulsky MI, Gimbrone MA, Jr. et al. An atherogenic diet rapidly induces VCAM-1, a cytokine-regulatable mononuclear leukocyte adhesion molecule, in rabbit aortic endothelium. Arterioscler Thromb 1993;13:197-204.
2. Cybulsky MI, Iiyama K, Li H et al. A major role for VCAM-1, but not ICAM-1, in early atherosclerosis. J Clin Invest 2001;107:1255-62.
3. Gauthier TW, Scalia R, Murohara T et al. Nitric Oxide Protects Against Leukocyte-Endothelium Interactions in the Early Stages of Hypercholesterolemia. Arterioscler Thromb Vasc Biol 1995;15:1652-59.
4. Libby P, Ridker PM, Maseri A. Inflammation and Atherosclerosis. Circulation 2002;105:1135-43.
5. Puren AJ, Fantuzzi G, Gu Y et al. Interleukin-18 (IFNgamma-inducing factor) induces IL-8 and IL-1beta via TNFalpha production from non-CD14+ human blood mononuclear cells. J Clin Invest 1998;101:711-21.
6. Coughlin SR. Thrombin signalling and protease-activated receptors. Nature 2000;407:258-64.
7. Okamura H, Tsutsi H, Komatsu T et al. Cloning of a new cytokine that induces IFN-gamma production by T cells. Nature 1995;378:88-91.
8. Moser R, Schleiffenbaum B, Groscurth P et al. Interleukin 1 and tumor necrosis factor stimulate human vascular endothelial cells to promote transendothelial neutrophil passage. J Clin Invest 1989;83:444-55.
9. Damas JK, Waehre T, Yndestad A et al. Interleukin-7-mediated inflammation in unstable angina: possible role of chemokines and platelets. Circulation 2003;107:2670-76.

2 comentários:

  1. Opa! Não é que o Luis apaeceu por aqui? Caro amigo, nós imunologistas adoraríamos esse intercâmbio colaborativo com os cardiologistas. Precisamos de um cenário no Brasil em que haja mais espaço e incentivo para este tipo de colaboração.

    Para quem está conhecendo o Luis agora, ele tem um blog fantástico sobre medicina baseada em evidência. Sou fã de carterinha. Talvez ele possa contribuir mais vezes neste blog mostrando a visão menos imunológica e muito criteriosa.
    Grande abraço

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  2. O endereço do Blog do Luis é: http://medicinabaseadaemevidencias.blogspot.com/

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