quinta-feira, 31 de março de 2011

Sobre a constância*

Por Nelson Vaz
2011-MAR-20

“Change proposes constancy: What is the ongoing entity of which we can
say that it has assumed a new form?” Mary Catherine Bateson

De acordo a Biologia do Conhecer (Maturana, 2002), dizemos em um texto recente:
”As entidades que distinguimos em nosso viver diário são de uma constância ilusória que oculta o turbilhão que as constitui. Nossa realidade é construída com objetos estáveis e eventos previsíveis e a Biologia, o estudo dos seres vivos, não poderia ser diferente: está interessada em descobrir os elementos que constituem os organismos e lhe conferem sua forma e propriedades. Nesta maneira de ver, os processos do viver são secundários às coisas em si (Vaz e Ramos, 2011).

Paradoxalmente, ao falar de mudança, falamos de algo que se conserva, algo que assumiu uma nova forma. Nossa cultura valoriza a mudança e a inovação, está menos atenta para aquilo que se conserva. Mas só podemos falar da variação de algo que, até então, permanecia. É impossível descrever a história de eventos ao acaso.

Segundo Maturana (2002):
“Processos históricos ocorrem momento a momento seguindo um trajeto constituído a cada instante na conservação de algo que conecta os momentos sucessivos, e à volta do qual, todo o resto pode mudar.”
e
“dizer que “sistemas vivos são sistemas históricos, é dizer precisamente que eles existem como entidades singulares em um fluxo contínuo de mudanças estruturais em torno da conservação da autopoiese e da adaptação.”

Os sistemas vivos mudam continuamente de estrutura mas não mudam sua organização como uma rede fechada de produções moleculares que estabelece seus próprios limites com as moléculas que constituem o meio, também molecular, no qual esse viver ocorre. Mudam mas não mudam sua maneira de mudar. Este é o conceito de organização autopoiética (auto-criadora/mantenedora).

Ainda Maturana (2002):
“De acordo com isso, não é a mudança que torna a evolução biológica um processo histórico: é a conservação ontogenética e filogenética contínuas da autopoiese e da adaptação, como aquilo em torno do qual, todo o resto pode variar. Nessas circunstâncias, o que é primariamente conservado na história dos sistemas vivos é o viver (autopoiese e adaptação).”

É preciso atentar para aquilo que é conservado naquilo que muda.
Entendemos hoje bastante bem os mecanismos genéticos e epigenéticos que fazem com que os seres vivos mudem em sua reprodução e seu viver. O que não entendemos, porque não atentamos para isso, é sobre o que é conservado na filogênese. Por que certas estruturas e certas relações não mudam e permanecem as mesmas face a tantas possibilidades de variação? Segundo Gregory Bateson, esta é a pergunta fundamental da cibernética (Bateson, 1967).



Segundo Maturana, quando compreendemos que “...o que é primariamente conservado na história dos sistemas vivos é o viver (autopoiese e adaptação), podemos compreender que isso também dá lugar a
“...formas diferentes de realização do viver através da conservação reprodutiva de diferentes maneiras de realização da autopoiese na conservação da adaptação..”

Constância na atividade imunológica
São ainda raras as indagações sobre o que se mantém constante na atividade imunológica. O trabalho de Adolfo Firmino da Silva Neto em sua tese de mestrado (Silva Neto, 2002) com os immunoblots desenvolvidos por Nóbrega et al. (Panamá blot) (Nóbrega et al., 2002) tem aspectos que ilustram bem este problema da constância em meio à variação. Adolfo estudou imunoglobulinas equinas e mostrou que as IgM em soros de cavalos hiperimunizados com toxinas bacterianas, venenos ofídicos e de escorpiões, exibem perfis de reatividade com extratos de tecidos equinos e de E. coli que não diferem significativamente dos perfis observados no soro de potros normais. Com as IgG, a situação é muito similar, embora surjam diferenças significativas em alguns soros (por exemplo, anti-escorpião). A constância (invariância) de perfis de reatividade de IgM, e em parte, também das IgG, com a idade, tem sido mencionada tanto na análise de camundongos quanto de humanos (Lacroix-Desmazes et al., 1995; Vani et al., 2008). Em conversas, Nóbrega também mencionou esta invariância em soros de animais imunizados, mas não sei onde isto está publicado.

Este seria um modelo adequado para abordar uma entidade global invariante que sabemos composta por elementos variáveis, ou seja, immunoblots que não variam de um soro a outro, embora estes soros difiram muito em atividade específica. Talvez agora, com o progresso no conhecimento com os micro-arrays de proteínas de Cohen e colaboradores (Madi et al., 2011), já seja possível entender melhor o que se passa.

Há um texto de John Stewart que critica os immunoblots argumentando que sua suposta invariância é um artefato. É preciso discutir este trabalho (Brissac et al., 1999), segundo o qual, com base em uma curva de calibração é possível avaliar a diversidade clonal de uma mistura de anticorpos através da medida de certos parâmetros. O texto conclui que a diversidade funcional das IgM naturais estaria em torno de 16 mil clones.

*inclui texto de 2004-JAN-10

- Bateson, G. (1967) Cybernetic explanation. American Behavioral Scientist 10, 29-32. Reprinted in Steps to an Ecology of Mind, New York, Balantine Books, pp 399-410, 1973.

- Brissac, C., Nobrega, A and Stewart, J. (1999). "Functional diversity of natural IgM." Int Immunol 11(9): 1501-1507.

- Lacroix-Desmazes, S., Mouthon, L., Coutinho, A. and Kazatchkine, M.D. (1995) Analysis of the human natural IgG antibody repertoire: life-long stability of reactivities toward self-antigens contrasts with age-dependent diversification of reactivities against bacterial antigens. Eur.J.Immunol. 25, 2598-2564.

- Maturana, H. (2002) Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing 9, 5-34.

- Nobrega, A., Stransky, B., Nicolas, N. and Coutinho, A. (2002) Regeneration of natural antibody repertoire after massive ablation of lymphoid system: robust selection mechanisms preserve antigen binding specificities. J Immunol 169, 2971-2978.

- Silva Neto, A.F.d. (2000) Desenvolvimento ontogenético do repertório de anticorpos no modelo equino. In: Departamento de Bioquímica e Imunologia. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

- Vani, J., Elluru, S., Negi, V.-S., Lacroix-Desmazes, S., Kazatchkine, M.D., Bayary, J. and Kaveri, S.V. (2008) Role of natural antibodies in immune homeostasis: IVIg perspective. Autoimmunity Reviews 7 440–444.

- Vaz, N.M. e Ramos, G.C. (2011) O que permanece naquilo que muda – Considerações sobre a mudança e a constância nos fenômenos imunológicos. EmEl HAni, C et al. “Darwin na Bahia” (no prelo).

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