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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Vírus Zika: Atualização sobre a epidemia, andamento das pesquisas e esclarecimentos sobre boatos

Autor: Dinler Amaral Antunes, Bacharel em Biomedicina pela UFRGS, Mestrado e Doutorado pelo PPGBM/UFRGS e pós-doutorado pela Rice University (Texas/EUA).

Na última sexta-feira (5/02/2016) a Organização Mundial da Saúde liberou um relatório sobre a situação da epidemia do virus Zika. O documento apresenta dados atualizados e recomendações reunidas por um comitê de especialistas, que em 1º de Fevereiro recomendou que o atual agrupamento de casos de microcefalia e de outras disfunções neurológicas reportados no Brasil, seguido de um agrupamento similar na Polinésia Francesa em 2014, constituem uma Emergência de Saúde Pública de Interesse Internacional (Fontes: OMS, BBC Brasil).
Os pontos principais do relatório incluem:
  • Existe uma forte suspeita de relação causal entre a infecção pelo vírus Zika durante a gestação e os casos de microcefalia, embora tal relação ainda não tenha sido comprovada (comentários abaixo). Existe um acordo entre os especialistas acerca da necessidade urgente de se coordenar esforços internacionais para investigar e entender esta relação.
  • Entre Janeiro de 2014 e 5 de Fevereiro de 2016, 33 países reportaram circulação autóctone do vírus Zika. Existe também evidencia indireta de transmissão local em outros 6 países.
  • A distribuição geográfica do vírus Zika tem expandido de forma constante desde sua primeira detecção nas Américas em 2015. É bastante provável que esta distribuição aumente, incluindo outras regiões onde existe circulação do vetor (o mosquito Aedes aegypti).
  • Sete países relataram um aumento na incidência de casos de microcefalia e/ou Síndrome de Guillain-Barré concomitantemente com o surto do vírus Zika.

    Veja o relatório completo da OMS: Zika situation report (Feb 2016)
Mapa  da distribuição geográfica do vírus Zika, divulgado pela OMS (Zika situation report). Existe forte preocupação de que o vírus se espalhe para outras áreas onde existe circulação do mosquito vetor (Aedes), como a Flórida (EUA). Reportagens recentes também salientam a identificação do vírus em amostras de saliva e urina, bem como transmissão sexual, mas mais estudos precisam ser realizados para esclarecer os riscos de transmissão por diferentes vias (mais referências no editorial "Zika virus: Emergence and Emergency").
 
Estabelecer de forma definitiva a relação causal entre a infecção por um patógeno e uma dada manifestação clínica não é uma tarefa fácil, sobretudo quando a manifestação afeta apenas uma parcela pequena dos indivíduos infectados e apresenta um intervalo grande de tempo entre o momento da infecção e a manifestação do referido desfecho. No caso em debate, a situação é ainda mais complicada pois envolve a infecção da mãe e uma manifestação no bebê, sendo portanto impactada tanto pela resposta imunológica da mãe quanto pelo sistema imunológico (em desenvolvimento) do próprio bebê. Cabe lembrar que existe uma série de peculiaridades com relação  a imunorregulação durante a gestação. Além disso, não podemos testar diretamente esta associação em laboratório (infectar grávidas e acompanhar o desfecho), o que também dificulta a formulação de hipóteses e o esclarecimento de um possível mecanismo que permita explicar as observações. É preciso coletar dados à medida que novos casos são investigados.   

Por outro lado, é preciso deixar claro que a suspeita mencionada acima não é apenas fruto da forte correlação temporal e geográfica (que poderia ser coincidência). Conforme recentemente divulgado em reportagem da Frontline (associada à rede pública PBS), existem claras evidências de relação direta entre a infecção pelo Zika e os casos de microcefalia (veja CDC-MMWR). Análises preliminares realizadas por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz indicaram a presença do vírus no líquido amniótico de duas mulheres cujos fetos apresentavam microcefalia (identificada por exame de ultrassom pré-natal) e o CDC americano detectou o vírus Zika no cérebro de dois bebês natimortos, bem como na placenta de duas mulheres que apresentaram aborto espontâneo. Outro estudo realizado no Brasil avaliou 35 bebês nascidos com microcefalia durante o período de Agosto a Outubro de 2015. Todas as mães visitaram (ou residiram em) áreas afetadas velo vírus Zika durante a gravidez, sendo que 26 delas (74%) apresentaram sintomas da infecção no primeiro ou segundo trimestre de gestação. Pelo menos 25 (71%) dos bebês estudados apresentavam microcefalia severa, sendo que todos os 35 bebês apresentaram resultados negativos para sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes. Amostras de líquor dos 35 bebês foram encaminhadas para um laboratório de referência para a detecção do vírus Zika, mas os resultados ainda não estão disponíveis (Fonte: CDC-MMWR).

Finalmente, em trabalho realizado em parceria pelo Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães e o CDC, um teste para detecção de anticorpos (IgM) específicos para o vírus Zika foi utilizado para testar amostras de líquor de 12 bebês com microcefalia (coletado logo após o nascimento). Todas as amostras foram positivas. Como a IgM é muito grande para passar a barreira placentária (molécula pentamérica), sua identificação no líquor dos bebês permite duas conclusões importantes. Em primeiro lugar, este anticorpo foi produzido pelo bebê (não pela mãe), o que implica que o bebê foi infectado pelo vírus antes do nascimento. Em segundo lugar, também indica que o vírus foi capaz de infectar o sistema nervoso do feto, conforme informa a autora do estudo Dra. Marli Tenório. Este teste já está sendo aplicado em pelo menos outros 28 casos de microcefalia (suspeitos ou confirmados) e os resultados deverão ser publicados em breve (Fonte: Frontline).

Em conjunto, estes trabalhos evidenciam a forte suspeita da comunidade científica sobre a relação entre os casos de microcefalia e a infecção pelo vírus Zika. No entanto, os dados ainda são limitados a amostras pequenas e não permitem extrapolação para os mais de 400 casos confirmados de microcefalia, até porque isso envolve testar e eliminar todas as outras possíveis causas. Além disso, foram reportados quase 5 mil casos suspeitos de microcefalia nos últimos 6 ou 7 meses no Brasil, muitos dos quais não serão confirmados. Isso representa uma barreira adicional, uma vez que diagnósticos imprecisos podem atrasar os estudos e dificultar as conclusões sobre a relação causal que se deseja investigar (Fonte: Lancet). 

Estes são os motivos pelos quais ainda não se divulgou uma resposta definitiva sobre a relação entre a infecção pelo vírus Zika e os casos de microcefalia. É preciso aguardar que mais casos sejam investigados e novos dados sejam publicados. Infelizmente esta demora e o posicionamento aparentemente "vago" dos pesquisadores envolvidos, apesar de correto, transmite uma certa incerteza para o público leigo e estimula sentimentos de frustração e de revolta, sobretudo entre aqueles que não estão familiarizados com a pesquisa biomédica. Esta situação abre caminho para boatos, os quais ganham ainda mais força quando refletem a opinião de pesquisadores. Este é o caso da denúncia junto ao MPF realizada por um Físico Pernambucano e amplamente divulgada nas redes sociais. Segundo o pesquisador, os casos de microcefalia no Brasil (particularmente em Pernambuco) seriam secundários à vacinação durante a gravidez. Visando esclarecer os fatos, a Dra. Lavinia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, publicou recentemente uma carta aberta, a qual transcrevo abaixo (com autorização da autora).
Prezado Dr. Plínio Bezerra
Vejo que está cometendo um equívoco sobre o risco de vacinas. Se quiser discutir a situação estamos disponíveis. Penso que não revisou adequadamente a literatura. O vírus da rubéola atenuado não causa síndrome da rubéola fetal. Vejo também que o senhor não tem experiência com desenvolvimento embrio-fetal.
Temos seguido os casos de microcefalia no Brasil e o padrão de imagem cerebral é muito diferente do da rubéola e esta acontecendo em mulheres que com certeza NÃO se vacinaram no inicio da gravidez.
Veja bem: se fosse o vírus da rubéola o STORCH (teste de anticorpos) teria que ser positivo para IgM (infecção recente) para rubéola e /ou sarampo. Nos nossos casos estudados, o STORCH foi NEGATIVO.
Veja nossas publicações sobre estes casos e sobre a vacina da rubéola, publicadas em revistas com peer-review. Também pode acessar meu CV Lattes.
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26820244, doi:10.15585/mmwr.mm6503e2
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17977696, doi:10.1016/j.reprotox.2007.09.002
Cordialmente,
Profa. Dra. Lavinia Schuler-Faccini
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Presidente - Sociedade Brasileira de Genética Medica
Resumindo, apesar de ainda não podermos afirmar de forma definitiva a relação causal entre o Zika e os casos de microcefalia, esta continua sendo a hipótese mais provável e vem sendo gradualmente reforçada pelos dados. Assim, continuam valendo as recomendaçoes para controle do mosquito e os cuidados com as possiveis fontes de transmissao do vírus Zika, sobretudo para mulheres grávidas (Fonte: CDC, Ministério da Saúde). Agradeço a Dra. Lavínia Schuler-Faccini pelo compartilhamento da carta-aberta e pela revisão do post.

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10 comentários:

  1. Muito bom Dinler! Agora toda sorte de teoria conspiratória vai surgir. Para o público leigo pode ser complicado distinguir o q é resultado de pesquisa séria das tentativas de se atacar a atividade científica e os produtos decorrentes da mesma, como as vacinas ou os insetos transgênicos. Já vimos isto antes. É claro que toda hipótese bem fundamentada deve ser investigada e é nosso dever esclarecer e informar o grande público, tranquilizando-o quando uma denúncia infundada como esta toma as redes sociais.

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    1. Oi Professora! Fiquei contente com a repercussão do post e de saber que ele foi usado como referência para esclarecer alguns boatos que estavam ganhando espaço nas redes sociais. Evidentemente existem questões ainda não respondidas e todas as alegações sérias deverão ser investigadas, mas as teorias conspiratórias sempre correm na frente. A revista Época publicou uma reportagem bem interessante com a pesquisadora Dilene do Nascimento, da Fundação Oswaldo Cruz, na qual ela explica: "Até que se construa conhecimento científico sólido, o conhecimento leigo preenche a lacuna”.

      http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/02/o-que-o-boato-sobre-o-larvicida-que-causa-microcefalia-diz-sobre-nosso-medo-de-epidemias.html

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  2. Muito elucidativo o texto.
    O grande debate sobre as vacinas nem leva em conta que a vacinação é especificamente pré-nupcial , e com perguntas especificas sobre gravidez.Mas demonstra interesse e um primeiro momento de se achar a causa.....
    Mas eu tenho variados assuntos que me chegaram , alem de um caso especifico que me intriga.
    Vamos lá :
    1o-Há relatos de um estudo( ou observação) feito nos EUA onde a doença Sarampo diminuiu os sintomas da virose produzida pelo Zika.Alguem soube disto?
    2o- Há contaminação sexual.Poderia ( hipótese minha) haver a contaminação sexual produzida a microcefali , estando a gestante que contaminou-se pela picada do Aedes Aegipty à salvo de ter bebes microcefálicos mas possivelmente com outras alterações que só serão vistas em 1/3anos (esta é a previsão - prognóstico interrogado- para os bebes..)?
    2o- Há transmissão outra que não pela picada do mosquito e por via sexual.O virus - ssRNA- foi encontrado ativo na urina, na saliva , no sangue.Não parece estar havendo muito empenho na pesquisa com o leite materno e suor..E é tão tranquilo esta pesquisa quanto a que foi feita com a saliva...Ou não? E porque ?
    3o- Estas crianças hoje microcefálica apresentam virus no LCR? No parenquima cerbral? Poderia ser feito RNM Cerebral com algum marcador? E há relatos de alterações de retina em pacientes com ZKV.
    Possivel fazer o cruzamento de anticorpos maternos anti pólio e anti H1N1 ( nas que se vacinaram) que apresentem a contaminação por ZKV durante a gravidez? E nos pacientes ( Homens e Mulheres ) com S.Guillan-Barré? Uma curiosidade cientifica minha que não afetará em nada e nem exporia à qualquer risco os Pacientes.
    O caso especifico:
    Examinei em outubro/novembro (?) criança já com 1 mes de vida , microcefálica , que apresentava alem do choro e desconforto , um RX de tórax-abdomem ( cabem dentro de uma só chapa devido ao tamanho do bebe)
    Grata.com alteração tipo casinha de abelha no abdomem .Avisei ao pediatra.Mas a mãe , que deveria retornar em 1 à 2 semanas com RNM cerebral , não retornou até dezembro. É uma imagem que pode ser considerada comum em Recem-Nascido ,pela literatura de revisão básica que fiz.Mais algum caso deste tipo ou em semelhante?

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    1. Oi Ana, obrigado pelos comentários. Vamos aos pontos:

      1) Não estou sabendo desta observação sobre efeito da co-infecção entre Sarampo e Zika, nem consegui achar a informação em uma busca rápida na web. No entanto, sabemos que nossa resposta imunológica a uma dada infecção sofre influência de diversos fatores, incluindo infecções prévias ou concomitantes. Apesar da grande vantagem da resposta adaptativa ser sua capacidade de atacar especificamente cada novo alvo, uma infecção viral também desencadeará uma série de mecanismos "inespecíficos" que podem alterar a resposta que esta sendo desencadeada contra um outro alvo. Por exemplo, certamente aumenta a produção de interferons que terão efeito tanto local quanto sistêmico, garantindo a manutenção de um perfil de resposta do tipo Th1 (mais eficiente no combate a infecções virais).

      2) Já foi confirmado que pode ocorrer contaminação por via sexual e isso vale para homens e para mulheres. A importância desta via no contexto da presente epidemia, no entanto, ainda não foi determinada. Conforme mencionaste, o vírus foi detectado em outros fluídos, os quais devem também ser considerados potencias vias de infecção. Detectar a presença do vírus em uma dada amostra é relativamente simples, seja urina ou leite materno. Mas o resultado negativo em uma dada amostra de leite materno, por exemplo, não garante que o vírus seja incapaz de acessar este fluído. Talvez a carga viral desta mulher esteja baixa, talvez ela tenha um determinado anticorpo que está bloqueando o vírus, etc. Mesmo testando várias amostras negativas, tu vai aumentando a tua confiança de que esta não é uma via usual, mas tu não pode excluir ela completamente. Por outro lado, se tu achares uma amostra positiva (considerando que não houve contaminação ou artefato), tu já tem uma evidencia de que aquela via é possível (embora tu não saiba a probabilidade). Portanto acredito que várias amostras estão sendo processadas e as conclusões estão sendo tomadas a medida que estes resultados surgem, mas tem coisas que não se pode antecipar ou responder de forma conclusiva (http://fivethirtyeight.com/features/why-its-so-hard-to-prove-zika-is-causing-birth-defects/).

      A discussão sobre formas de contágio é independente da discussão sobre a associação entre a infecção pelo Zika e o risco de desenvolvimento de microcefalia no feto. Não existe nenhuma indicação de que os casos de microcefalia sejam causados apenas quando ocorre infecção por via sexual, ou qualquer outra via. A princípio, se o vírus circula no sangue da mãe e tem tropismo pelo feto, ele vai conseguir chegar ao feto independente da via pela qual ele teve acesso ao sistema circulatório da mãe. E uma vez tendo acessado o sistema nervoso do feto, potencialmente causará alterações no mesmo. Estas alterações podem variar quanto a gravidade e quanto ao estágio em que poderão ser detectadas, mas ainda não estão claros os fatores responsáveis por esta variabilidade.

      3) Os dados ainda estão se acumulando sobre a presença do vírus no sistema nervoso dos bebes. Por enquanto ainda são um número limitado e não sei te dizer se existe evidencia de diferentes tecidos/regiões sendo preferencialmente afetados. E sobre aspectos clínicos eu também não tenho como colaborar, visto que minha área de atuação é mais teórica (pesquisa básica em bioinformática estrutural).

      Mais uma vez, obrigado pelos comentários!

      Abraço!

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  3. O Grata saiu em parágrafo acima e algumas letras foram subtraidas das palavras..
    Grata.

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  4. IGM é muito grande e nao ultrapassa a barreira placentária? Não seria a IGG ? Como na toxoplasmose primária diferente da recidiva ou reiinfecção?

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    1. IgM está na fotma pentamérica, esse complexo é grande e não pode atravessar a barreira placentária.

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    2. Exatamente Claudio. Conforme respondido pelo colega, a questão levantada diz respeito a estrutura das diferentes imunoglubulinas e ao fato de a IgM pentamerica não conseguir passar a barreira placentaria (http://spot.pcc.edu/~jvolpe/b/bi234/lec/8_9defenses/defensesII/fig16.7_Ab_Class.jpg). Portanto fica claro que ela era produzida pelo próprio bebe. E sim, fazendo parte de uma resposta primária a infecção. Testes futuros nestes mesmos bebes não encontrarão IgM contra Zika, mas deverão encontrar anticorpos do tipo IgG.

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  5. Sobre a vacina DTPa o que voces falam a respeito?

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    1. A vacina tríplice bacteriana acelular (dTpa-R) é uma vacina segura e recomendada por diversas confederações medicas e órgãos de regulamentação e vigilância na área da saúde, tanto no Brasil como no exterior. O CDC americano tem uma cartilha com informações sobre a vacina (http://www.cdc.gov/vaccines/hcp/vis/vis-statements/dtap.pdf).

      http://www.febrasgo.org.br/site/?p=5773
      http://www.cdc.gov/vaccines/hcp/vis/vis-statements/dtap.html
      http://www.cdc.gov/vaccinesafety/vaccines/dtap-tdap-vaccine.html

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